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Mulheres e consolidação da paz

Tatiana Moura *

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Os conflitos armados, em particular os conflitos armados contemporâneos, pelas suas novas características, objectivos e tácticas de terror, têm impactos distintos nas vidas de mulheres e homens. No entanto, apenas muito recentemente foi reconhecida esta especificidade, em particular após a Conferência das Nações Unidas sobre Mulheres realizada em Pequim, em 1995. Estes impactos diferenciados traduzem-se em papéis distintos desempenhados e assumidos por mulheres e homens em contextos de conflitos armados e na fase de reconstrução pós-conflito. São vários os exemplos de mulheres que, individual ou colectivamente, contribuem para a consolidação da paz em todo o mundo. Mas são, também, frequentes as vezes em que estes esforços são subestimados, devido, em grande medida, ao seu carácter não convencional ou informal, e por serem considerados extensões naturais das suas ‘tarefas’ de reprodução, confinadas à esfera privada. Apesar de todas as recomendações, declarações e compromissos assumidos em particular pelas Nações Unidas ao longo dos últimos anos, existe ainda um grande fosso entre a retórica e a prática no que diz respeito à consolidação da paz e reconstrução das prioridades do pós-guerra.

 

Mulheres, paz e segurança:os discursos e práticas institucionais

Apesar de ser uma questão que faz parte da agenda da Comissão das Nações Unidas para o Estatuto das Mulheres (CSW) desde 1947, o tema ‘mulheres e paz’ não era considerado um tema prioritário. Na Conferência das Nações Unidas sobre Mulheres, no México, em 1975, salientou-se a vulnerabilidade de determinados grupos em contextos de conflitos armados, em particular mulheres e crianças, bem como a importância de envolver as mulheres em processos de paz. Durante a Década Internacional para as Mulheres (1975-1985) os temas da igualdade, desenvolvimento e paz foram centrais, e o documento resultante da Conferência de Nairobi, Nairobi Forward-looking Strategies for theAdvancement of Women (1985), iniciava a discussão sobre mulheres, paz e segurança.

Ao longo das décadas de 80 e 90 as Nações Unidas prestaram cada vez mais atenção aos impactos de conflitos armados nas vidas das mulheres. Um dos motivos que conduziram a um aumento do interesse pela participação das mulheres nas operações de paz e segurança foi o sucesso do Grupo de Assistência à Transição das Nações Unidas (United Nations Transition AssistanceGroup – UNTAG) da Namíbia, em 1989-90, no qual as mulheres constituíram 60% do pessoal profissional recrutado para a operação (Skjelsbaek, 2001:18.). Surge então uma nova tendência nas análises da paz e da segurança, nomeadamente, no processo preparatório da Quarta Conferência Mundial sobre Mulheres, em 1995, em Pequim. A DAW(Division for the Advancement of Women) e a UNESCO, responsáveis pelo secretariado da Conferência, levaram a cabo medidas para assegurar que a questão da paz, as preocupações e as expectativas das mulheres fossem incluídas no centro do discurso político do chamado Processo de Pequim, organizando, respectivamente, duas pré-conferências.

A primeira, organizada pela DAW, teve lugar em Nova Iorque, em Dezembro de 1994, e foi subordinada ao tema ‘Género e a Agenda para a Paz’. O principal objectivo desta pré-conferência foi analisar criticamente aquele relatório, lançado em 1992 pelo então Secretário Geral da ONU. A segunda pré-conferência, organizada pela UNESCO, intitulada ‘Contribuições das Mulheres para uma Cultura da Paz’, teve lugar em Manila, em Abril de 1995, e teve como objectivo analisar as raízes da cultura da violência, bem como os potenciais contributos e estratégias das mulheres para alcançar uma cultura da paz. Em ambos os encontros foi elaborado um documento, posteriormente apresentado na Conferência de Pequim. A atitude até então prevalecente, que via as mulheres como grupo alvo da assistência humanitária, começava a ser substituída pela necessidade de envolver activamente as mulheres na resolução dos conflitos.

A Plataforma de Acção resultante de Pequim constituiu o primeiro documento das Nações Unidas, fora do quadro da UNESCO, a utilizar o conceito de cultura da paz, no seu Objectivo Estratégico E.4., relativo à necessidade de promoção das contribuições das mulheres para uma cultura da paz. Além disso, a partir desta quarta Conferência, as Nações Unidas comprometeram-se a adoptar e a incluir uma perspectiva centrada nas preocupações, expectativas e acções das mulheres em todas as suas actividades e políticas, e a ver as mulheres não apenas como vítimas de injustiça mas como agentes importantes de mudança. O Programa “Mulheres e Cultura da Paz” da UNESCO foi criado em 1996, numa tentativa de fazer cumprir os requisitos da Plataforma de Acção de Pequim (em particular do seu Objectivo Estratégico E.4.), incluindo desta forma uma perspectiva feminista no projecto criado em 1993, “Para uma Cultura da Paz”.

Este programa tem como base o pressuposto de que a igualdade entre mulheres e homens constitui uma pré-condição para a criação de uma cultura da paz e a necessidade de usar na íntegra as experiências, visões e potenciais das mulheres a todos os níveis da sociedade. O programa foi posto em prática em África em 1998 e 1999, e traduziu-se pelo envio de missões de paz compostas por mulheres para determinadas zonas de conflito, tendo em vista o reforço do papel das mulheres como promotoras da paz, tentando amplificar as vozes das mulheres locais, nomeadamente, recolhendo informação sobre técnicas de mediação tradicionais usadas por estas mulheres.

 

Mulheres e meninas vítimas de violência

O desenvolvimento dos debates sobre a violência contra as mulheres em geral, em particular em tempos de conflitos armados, foi possível em grande medida através das informações reunidas pela Comissão de Peritos sobre o conflito na ex-Jugoslávia. Esta Comissão reuniu testemunhos sobre violações do direito internacional humanitário e incluiu cerca de 1.100 relatórios sobre violência sexual. Em 1993, a Conferência das Nações Unidas sobre Direitos Humanos, realizada em Viena, reconheceu a violência cometida contra as mulheres em tempos de conflitos armados como uma violação de direitos humanos. A Assembleia Geral adoptou ainda em 1993 a Declaração sobre a Eliminação de todas as Formas de Violência contra as Mulheres, reconhecendo que as mulheres constituem um grupo particularmente vulnerável em situações de conflitos armados. A Quarta Conferência Mundial sobre Mulheres, realizada em Pequim em 1995, deu particular relevo à questão ‘mulheres e conflitos armados’. A Plataforma de Acção saída desta Conferência reconheceu, no seu parágrafo 133, que as baixas civis ultrapassam em larga escala as baixas militares, sendo as mulheres e as crianças os grupos mais afectados. As experiências particulares de mulheres e meninas em situações de conflitos armados estão directamente relacionadas com o seu estatuto nas sociedades. No parágrafo 135 da Plataforma de Acção de Pequim podemos ler que “apesar das comunidades enquanto um todo sofrerem as consequências dos conflitos armados, as mulheres e as meninas são particularmente afectadas devido ao seu estatuto na sociedade e ao seu sexo”.

Após a Conferência de Pequim foram dados alguns passos importantes no que diz respeito ao reconhecimento dos impactos dos conflitos armados nas vidas de mulheres e meninas. Em 1998 a violação e a violência sexual em tempos de guerra passaram a ser consideradas crimes contra a Humanidade. Em pleno processo de revisão da Plataforma de Pequim (também conhecido por Pequim+5), no dia 8 de Março de 2000 (Dia Internacional da Mulher), o Conselho de Segurança das Nações Unidas emitiu o comunicado de imprensa 6816 (Declaração do CSNU no Dia Internacional da Mulher). Neste comunicado o Conselho reconheceu, pela primeira vez, os contributos de grupos de mulheres para a construção da paz, bem como as diferenças e especificidades das necessidades de mulheres e homens em contextos de guerra.

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Possibilidades e limites de iniciativas recentes

Em Maio de 2000 o Departamento de Operações de Manutenção da Paz das Nações Unidas organizou um seminário intitulado “Mainstreaming a GenderPerspective in Multidimensional PeaceSupport Operations”, em Windhoek, na Namíbia. No documento fi nal deste encontro foi assumido o compromisso e a necessidade de adoptar e assegurar a igual participação de mulheres e homens em todos os aspectos dos processos de paz. Entre 5 e 9 de Junho de 2000 realizou-se a 23ª Sessão Especial da Assembleia Geral das Nações Unidas, intitulada “Mulheres 2000: igualdade de género, desenvolvimento e paz para o século XXI”. Nesta sessão foram reforçados os compromissos assumidos pela Declaração e Plataforma de Acção saídos de Pequim. O documento resultante desta sessão, do qual são signatários 188 governos, salientou uma vez mais a necessidade de incluir as mulheres em todos os níveis de tomada de decisão nos processos de paz, manutenção e consolidação da paz.

A 24 e 25 de Outubro de 2000, o Conselho de Segurança levou a cabo uma discussão aberta sobre mulheres, paz e segurança, na qual quarenta Estados-membros declararam apoiar a inclusão de perspectivas de género nas operações de manutenção da paz, bem como a participação das mulheres em todos os aspectos dos processos de paz. A 31 de Outubro de 2000 foi adoptada pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas a Resolução 1325 (2000) sobre Mulheres, Paz, Segurança e Direitos Humanos. A adopção desta Resolução resultou, por um lado, da avaliação negativa que foi feita da implementação da Plataforma de Acção de Pequim e, por outro, da necessidade de resposta às preocupações manifestadas e sentidas por mulheres em conflitos com características cada vez mais complexas. Foi, deste modo, assumido o compromisso e reforçada a necessidade de adoptar uma perspectiva de género em todos os esforços de prevenção e resolução de conflitos, de consolidação e manutenção da paz e de reconstrução de sociedades levados a cabo pelas Nações Unidas. Após a adopção desta resolução, e perante a manutenção da exclusão e marginalização das mulheres em contextos de conflitos armados, o Conselho de Segurança voltou a discutir o tema em Outubro de 2001 e em Julho de 2002.

Actualmente, e apesar do maior reconhecimento internacional da necessidade de incluir as mulheres, as suas necessidades específicas e contributos em todas as esferas de consolidação da paz, a grande maioria dos programas institucionais de consolidação e reconstrução da paz continuam a marginalizar os impactos específicos dos conflitos armados nas vidas das mulheres. Apesar de toda a retórica, os programas levados a cabo pelas Nações Unidas continuam a subalternizar iniciativas locais e nacionais de construção da paz, e a perpetuar relações de poder desiguais que continuam a servir para legitimar a subordinação das mulheres. Os esforços institucionais de consolidação e construção da paz continuam a ser altamente masculinizados e a considerar as mulheres como vítimas passivas dos conflitos, em particular, vítimas de violência sexual, negando-lhes assim qualquer oportunidade de actuação e de participação nos processos formais que conduzem à paz.

 

Informação Complementar

DECLARAÇÃO DO CSNU NO DIA INTERNACIONAL DA MULHER: COMUNICADO DE IMPRENSA SC/6816 DE 08.03.2000

Considerando está a ser celebrado em todo o mundo o primeiro Dia Internacional da Mulher do novo milénio, os membros do Conselho de Segurança reconhecem que a paz se encontra intrinsecamente ligada à igualdade entre mulheres e homens. Os membros afirmam que o acesso igual e a plena participação das mulheres nas estruturas de poder e o seu pleno envolvimento em todos os esforços para a prevenção e resolução de conflitos são essenciais para a manutenção e promoção da paz e segurança. Neste contexto, os membros congratulam-se com a revisão da 4ª Conferência Mundial de Mulheres, como um elemento essencial na concretização deste objectivo. Os membros do Conselho reconhecem, igualmente, que, enquanto comunidades inteiras sofrem as consequências do conflito armado, as mulheres e as raparigas são especialmente afectadas.

O impacto da violência sobre as mulheres e da violação dos direitos humanos das mulheres em situações de conflito é sofrido por mulheres de todas as idades. As mulheres constituem igualmente a maior parte dos refugiados e deslocados internos em todo o mundo. Os membros do Conselho também tomam nota que, embora as mulheres tenham começado a desempenhar um importante papel na resolução de conflitos, manutenção e construção da paz, ainda se encontram sub-representadas nas tomadas de decisão relativamente aos conflitos. Se as mulheres devem participar em parte igual na segurança e manutenção da paz, devem ser política e economicamente fortalecidas e adequadamente representadas em todos os níveis de tomada de decisão, não só na fase do pré-conflito e durante as hostilidades, mas também no ponto de manutenção e construção da paz, reconciliação e reconstrução.

Os membros do Conselho também reconhecem que durante o conflito armado e colapso das comunidades, o papel das mulheres é crucial na preservação da ordem social, na qualidade de educadoras da paz nas suas famílias e sociedades, desempenhando, assim, um importante papel na promoção de uma cultura de paz nas comunidades e sociedades devastadas por conflitos. Os membros do Conselho apelam a todos os que se encontram ligados ao refreamento dos abusos de direitos humanos, em situações de conflito, muitas vezes de forma específica relacionada com o género, que respeitem o direito humanitário internacional e promovam formas não violentas de resolução de conflitos e uma cultura de paz. Os membros do Conselho chamam de novo a atenção sobre a obrigação de serem julgados os responsáveis por violações graves do direito humanitário internacional, ao mesmo tempo que se congratulam com a inclusão, no Estatuto de Roma relativo ao Tribunal Criminal Internacional (TCI), de todas as formas de violência sexual como crimes de guerra, tomando nota do papel que o Tribunal pode desempenhar para acabar com a impunidade para os perpetradores de tais crimes.

Os membros do Conselho salientam que tais esforços devem ser reforçados, para prover protecção, assistência e treino às mulheres refugiadas, mulheres deslocadas com necessidade de protecção internacional e mulheres internamente deslocadas em situações de conflito. Os membros do Conselho salientam a importância de promover uma política activa e visível de incluir uma perspectiva género em todas as políticas e programas relacionados com conflitos armados ou outros.

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* Tatiana Moura

Licenciada em Relações Internacionais pela Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Mestre em Sociologia pela Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Doutoranda em “Paz, Conflictos y Democracia” na Universidade Jaume I de Castellón de la Plana (Espanha). Investigadora do Núcleo de Estudos para a Paz do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra.

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Bibliografia

BREINES, I.
(1999) – “A Gender Perspective on a Culture of Peace”. In Breines et al. (orgs.) – Towards a Women’sAgenda for a Culture of Peace. Paris: UNESCO.

SKJELSBAEK, I. e SMITH, D. (2001) – Gender, Peace & Conflict. Londres: SAGE Publications.

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