Pesquisar

  Janus OnLine - Página inicial
  Pesquisa Avançada | Regras de Pesquisa 
 
 
Onde estou: Janus 2005 > Índice de artigos > Guerra e Paz nos nossos dias > Missões de paz da ONU e participação portuguesa > [A “razão humanitária” e a participação portuguesa]  
- JANUS 2005 -

Janus 2005



Descarregar textoDescarregar (download) texto Imprimir versão amigável Imprimir versão amigável

ESTE ARTIGO CONTÉM DADOS ADICIONAIS seta CLIQUE AQUI! seta

A “razão humanitária” e a participação portuguesa

Fernando Nobre *

separador

Antes de proceder ao historial, muito parco infelizmente, da participação de organizações humanitárias portuguesas em paralelo com a presença das forças militares e de segurança em operações “com objectivos humanitários”, importa esclarecer que o que está em causa não é uma presença militar, per si, que sempre ocorreu nos vários palcos de conflito, precedida ou seguida de situações humanitárias graves, antes, uma mudança de paradigma com que as forças militares e as instituições humanitárias, em geral, acabam por ter que conviver. A presença de forças militares e de segurança em situações de conflito resulta hoje de um novo paradigma em que é invocada a “razão humanitária” como justificativo determinante da sua presença, quando não da própria génese da intervenção militar. Assim aconteceu recentemente na Somália, Bósnia, no Kosovo e até em Timor, no Afeganistão e no Iraque.

Este novo paradigma desenvolveu-se resguardado no conceito do “direito” ou “dever de ingerência” defendido, nos finais dos anos 80, por Mario Bettati, professor de direito internacional público da Universidade de Paris II, e Bernard Kouchner, médico e político francês, um dos fundadores da Associação “Médecins Sans Frontières”. Na ausência de definição clara e universal do que seria um “povo em perigo” ou um “genocídio”(palavra abusiva e repetidamente utilizada na questão do Kosovo para justificar e legitimar o ataque da NATO à Sérvia), a intervenção militar “humanitária” concretizou-se, sobretudo, com objectivos quase sempre pouco claros e transparentes, em regiões do mundo onde coexistiam nítidos interesses geopolíticos e económicos com critérios de implementação de duvidosa legitimidade humana.

 

Historial recente da presença das forças militares “por razões humanitárias”

Na história recente dos conflitos, a primeira vez que se invocou a urgência de um verdadeiro “direito de ingerência” foi aquando da intervenção militar de vários Estados ocidentais no Curdistão iraquiano, em Abril de 1991, após a primeira guerra do Golfo, a que se seguiu, autorizada pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas, a operação dos EUA “Restore Hope” (“Restaurar a Esperança”) na guerra civil da Somália, em 1992, verdadeiro detonador e ponto de partida para um novo paradigma no que diz respeito à intervenção humanitária. Daí estruturou-se e banalizou-se a coexistência, em muitos conflitos, entre as organizações humanitárias não governamentais e as forças militares presentes “por razões humanitárias”, como se verificou com a intervenção francesa “Opération Turquoise” no Ruanda, em 1994, após o genocídio dos tutsis pelos hutus, ou as operações militares da NATO (que se mantêm!) na Bósnia- Herzegovina (1994-1995), na Albânia (1997), no Kosovo (1999), sem esquecer as várias intervenções da ONU na Serra Leoa, Libéria, Zaire, as intervenções, sob múltiplos pretextos, no Afeganistão e no Iraque, sendo um caso à parte a intervenção militar em Timor, sob auspício da ONU, em 1991, porquanto, com contornos jurídicos particulares e precisos, foi, neste caso, invocada com total justificação a razão “humanitária” e de “povo em perigo” para legitimar a intervenção.

Já na guerra Irão-Iraque (1981), no conflito Israel-Palestina, no Líbano (Beirute 1982) e nas guerras Líbia-Chade (1981 e 1983) tinha havido a coexistência no terreno de forças militares e de instituições humanitárias. Porém, nessa altura a intervenção militar não ousava ainda invocar “razões humanitárias” para a sua acção e a separação dos intervenientes humanitários e militares no terreno era clara, com o confronto aberto entre forças militares estruturadas que provocavam danos sérios nas populações civis junto das quais as instituições humanitárias não governamentais intervinham no sentido de lhes prestar assistência, sem outro constrangimento que o perigo inerente a qualquer teatro de guerra.

O conflito da Somália abriu uma nova página nas relações entre as forças militares e de segurança e as instituições humanitárias internacionais. Sob cobertura de uma decisão do Conselho de Segurança, as organizações humanitárias tiveram que conviver com a presença e interferência de forças militares e de segurança nos teatros de intervenção humanitária. Emergia assim, um novo paradigma em que os Estados dominantes já não mais se mobilizam para resolver os urgentes problemas estruturais existentes no Mundo, como o subdesenvolvimento, a pobreza, a miséria, a má governação, a exclusão e a intolerância (étnica ou religiosa...), optando por deixar eclodir os conflitos e utilizando o argumento “humanitário” como álibi da sua inoperância, incapacidade e falta de acção política.

É neste contexto que as instituições humanitárias tiveram que aprender a sobreviver: tentar resistir aos Estados com vocação “humanitária” e ter como novel “parceiro” as forças militares e de segurança com a sua novíssima, nobilíssima, mas questionável motivação “humanitária”. Esta coabitação no terreno de forças militares e de segurança e organizações humanitárias independentes resultou, nalguns casos, na melhoria da sua segurança e da sua capacidade logística (transporte e comunicações), mas também por via de regras e comportamentos dúbios de comando e coordenação, na criação de extremas dificuldades às instituições humanitárias independentes, nomeadamente, quanto à sua própria segurança, credibilidade, independência e neutralidade, junto dos seus parceiros no terreno e das populações sob assistência. Desde então, note-se, os membros de organizações humanitárias (da ONU, Cruz Vermelha Internacional, ONG’s) começaram a ser friamente executados, porque vistos como fazendo parte da própria intervenção militar, ou como sendo “militares disfarçados de civis humanitários” ou, no mínimo, como coniventes, quando não informadores e espiões das intervenções militares.

Em simultâneo ao desencadeamento de todo este novo processo “humanitário” assistiu-se, também, ao condicionamento do acesso aos financiamentos públicos e institucionais, a uma tentativa de instrumentalização, subalternização, manipulação e subcontratação da intervenção humanitária independente, em benefício das acções humanitárias dos Estados, através das suas forças militares, serviços de emergência civil e empresas multinacionais...

 

As organizações humanitárias portuguesas e as forças militares e de segurança no terreno

Descrever e analisar a presença das organizações humanitárias portuguesas em paralelo com forças militares e de segurança é extremamente frustrante e difícil. Em geral, tirando duas ou três situações concretas em que essa situação foi notória (Timor, Angola e Guiné), a esmagadora maioria das pouquíssimas – no máximo uma dezena – organizações humanitárias portuguesas (incluindo nessa denominação as delegações nacionais de algumas instituições humanitárias internacionais que actuam, enquadradas e tuteladas pelas suas casas mães, sem autonomia e responsabilidade político-financeira e logística) não têm capacidade efectiva de intervenção para actuarem, em geral, nas grandes crises humanitárias mundiais.

Segundo sabemos, correndo o risco de cometer alguns, poucos, lapsos e injustiças, em Angola, durante a década de 90, em contacto com capacetes azuis das N.U. terão estado umas 6 a 8 ONG’s portuguesas; na Guiné-Bissau (1998) umas 5 a 6; em Timor umas 6 a 7, com as forças da coligação liderada pelos EUA no Afeganistão-Paquistão (2001-2002) apenas 3, no Iraque (2003) só 2 e na Jordânia (2003) só 1. De salientar que a Fundação AMI esteve presente em todos os cenários referidos, com todas as citadas implicações decorrentes da nova situação vivida no terreno condicionando o dia-a-dia das nossas acções humanitárias.

A emergência de um novo paradigma, a partir de 1991, alicerçado na perversão do generoso conceito de “direito de ingerência humanitária” pela convivência, no terreno humanitário, de instituições independentes não governamentais e forças militares e de segurança, traduz-se em evidentes riscos que importa ter em devida conta pelos actuais intervenientes na acção humanitária, se quisermos evitar mais tragédias como aquela que vitimou Sérgio Vieira de Melo em Bagdade em 1993. O fatal atropelo dos conceitos de neutralidade e imparcialidade da ajuda humanitária, a insegurança, trágica e generalizada, instalada hoje em dia nos teatros humanitários para os agentes das instituições humanitárias genuínas, constituem hoje riscos tremendos para a ajuda humanitária independente sem fins políticos, económicos ou estratégicos.

Tal facto é resultante da total confusão vivida na “comunidade humanitária”, onde já não está claro para ninguém, nem mesmo para as populações necessitadas, “quem é quem” no terreno humanitário: ONG’s, agências das NU, Estados, OSCE, forças militares, forças policiais de segurança, empresas multinacionais... A experiência das organizações não governamentais portuguesas com esta nova situação é escassa mas já suficiente para estarem conscientes e alertadas quanto ao perigo da mistura de géneros e não clarificação dos objectivos das missões no terreno humanitário por parte das organizações humanitárias, dos militares e outros...

Este novo paradigma fragiliza ainda mais a já fraca capacidade de intervenção e independência das organizações humanitárias portuguesas. Não obstante a sua grande debilidade, devida ao seu surgimento tardio, ao pouco reconhecimento político nacional, à pouca cultura de solidariedade do país para as questões humanas globais, ao fraco tecido económico nacional, as ONG’s humanitárias portuguesas continuam a pugnar, num contexto de enorme competitividade e complexidade, pela sua presença efectiva no campo humanitário, transformado por vezes num autêntico palco militar e mediático. Efectivamente, para que uma organização humanitária possa estar presente nesses cenários de alto risco é fundamental que disponha de capacidade financeira, logística e organizativa, sendo um dos aspectos essenciais das missões humanitárias actuais que mais importa acautelar a segurança dos próprios membros em missão, requerendo-se dispositivos internos de segurança e alerta, e esquemas de evacuação, bem como onerosos e sofisticados meios de comunicação.

Topo Seta de topo

A análise que a AMI faz da presença simultânea de uma instituição humanitária portuguesa com a presença de forças militares e de segurança (por vezes portuguesas como foi o caso em Timor, Moçambique e Angola, na Bósnia, no Kosovo e mais recentemente no Iraque) é que a nossa intervenção foi pontualmente ajudada em questões de segurança e por vezes facilitada em termos de acesso a meios logísticos ímpares (de que só as forças militarizadas podem dispor, nomeadamente, ao nível do transporte e das comunicações). E é verdade que, excepcionalmente, chegámos também a beneficiar das boas relações existentes entre os nossos militares e as autoridades locais (no caso em apreço, o Batalhão português e as entidades locais de Rogatica, na Bósnia) o que nos facilitou, nesse caso concreto, a reabilitação do hospital local.

Nessas situações “limite” haverá sempre que abordar a questão com franqueza e cautela com todas as partes envolvidas para que não se instalem relações dúbias. Ao contrário, na Macedónia, no Afeganistão e Iraque, a coexistência no terreno de forças militares e de segurança com organizações humanitárias não governamentais foi particularmente nefasta para estas no que diz respeito à sua segurança, neutralidade, movimentação e independência de acção. Na Macedónia ocorreu mesmo que as forças militares presentes (não portuguesas), sob o critério da nacionalidade das ONG’s, filtrarem o acesso destas organizações aos campos de refugiados kosovares. No Iraque foi sugerido às organizações humanitárias não governamentais que apenas se deslocassem integradas em colunas militares e andassem armadas, o que a AMI e outras sempre recusaram, pese embora os riscos reais existentes, criados, sobretudo, pela enorme confusão de intervenientes na “ajuda humanitária”.

 

Conclusões

Parece-nos fundamental que se deixe de invocar, por parte dos Estados e das forças militares e de segurança, o argumento humanitário tantas vezes chamado para justificar as acções militares dos Estados ocidentais em África, nos Balcãs, no Próximo e Médio Oriente, e que os militares em missão andem sempre fardados e que não façam (militares no activo ou “reservistas”) acções humanitárias trajados à civil. É fundamental que também se considere e respeite, pese embora as suas insuficiências, o sistema jurídico internacional consagrado na Carta Magna das Nações Unidas que é, sem dúvida alguma, menos mau que um sistema que integraria a generalização de “um direito de ingerência humanitário” que abre horizontes a todos os desvarios.

A título ilustrativo, gostaria de relatar dois casos em que a AMI esteve directamente envolvida e que traduzem o novo paradigma humanitário aqui abordado. No primeiro fomos beneficiados com a presença de militares e de forças de segurança no terreno. No segundo, sofremos as consequências da confusão instalada nos espíritos sobre “quem é quem” no campo humanitário.

• O primeiro passa-se em Timor, em 2001, quando, a certa altura, três jovens timorenses, perseguidas por uma turba em fúria, se refugiaram no nosso centro de saúde em Díli. A multidão tentou incendiar o centro de saúde da AMI, depois de o ter apedrejado, acto tresloucado que não teve maiores consequências devido à rápida intervenção das forças de segurança das Nações Unidas, então presentes em Timor.

• Ao lado deste acontecimento positivo temos infelizmente de referir outro mais negativo que se prende, igualmente, com questões de segurança. A presença militar e de forças de segurança no terreno veio, sobretudo, complicar a própria imagem que as populações socorridas e as entidades locais tinham das ONG’s, e das agências das NU (recorde-se os recentes atentados em Bagdade contra as instalações das Nações Unidas e as do Comité Internacional da Cruz Vermelha).

No nosso caso o incidente trágico ocorreu no Ruanda, em Janeiro de 1997, quando três espanhóis de uma organização humanitária foram friamente executados a 9 km da nossa missão. Tal barbaridade provocou, na altura, a saída do Ruanda da AMI e de outras ONG’s internacionais. Tínhamos todos percebido a mensagem política...

separador

* Fernando Nobre

Presidente da Fundação AMI (Assistência Médica Internacional). Doutor em Medicina, especialista em Cirurgia Geral e Urologia.

separador

Dados adicionais
Gráficos / Tabelas / Imagens / Infografia / Mapas
(clique nos links disponíveis)

Link em nova janela Vivência humanitária da AMI em paralelo com forças militares e de segurança

Topo Seta de topo

 

- Arquivo -
Clique na edição que quer consultar
(anos 1997 a 2004)
_____________

2004

2003

2002

2001

1999-2000

1998

1998 Supl. Forças Armadas

1997
 
 

Programa Operacional Sociedade de Informação Público Universidade Autónoma de Lisboa União Europeia/FEDER Portugal Digital Patrocionadores