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- JANUS 2005 -

Janus 2005



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Portugal e as missões de paz na ex-Jugoslávia (II)

Carolina Cordeiro *

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O envio da força de imposição da paz – IFOR – para a ex-Jugoslávia correspondeu a um importante passo conceptual nas políticas externa e de defesa nacionais como na doutrina de operações de paz até então vigente. O falhanço da UNPROFOR alertara para as limitações do envio de uma força neutral e não armada para um cenário de conflito aberto, onde o consentimento das partes era um compromisso frágil, pelo que a IFOR procurou colmatar essas falhas. Para Portugal, era também a primeira vez que se enviavam tropas para um conflito europeu desde a 1ª Guerra Mundial, quebrando a política de neutralidade herdada do Estado Novo. Apesar das incertezas que rodearam a discussão sobre o envio desta força, a verdade é que a IFOR, no prazo estabelecido para a sua actuação, conseguiu cumprir o objectivo do seu mandato quanto aos compromissos militares dos acordos de paz, e Portugal viu o seu estatuto na Europa evidenciado por uma colaboração activa nos processos de decisão e actuação continentais.

 

A terceira fase do conflito (1997-hoje): da IFOR à construção de uma paz estável

Apesar de constatado, em Dezembro de 1996, o sucesso da IFOR, muito estava ainda por fazer no âmbito dos compromissos civis dos acordos de paz, fundamento de qualquer paz durável, pelo que se decidiu que a IFOR seria substituída no terreno por uma força de estabilização da paz, a SFOR (Stabilization Force). A diferença entre as duas missões residia no seu papel relativamente ao processo de paz; a IFOR para a implementação da paz, a SFOR para a sua estabilização (1), pelo que, em virtude do seu diferente mandato, contava com um menor efectivo militar, traduzindo-se a sua missão, sobretudo, no apoio a actos eleitorais, à acção de organizações internacionais humanitárias, ao regresso dos refugiados e à manutenção da ordem pública, para além das tradicionais patrulhas e operações de desarmamento.

Coerentemente, Portugal decidiu garantir a sua continuidade na segunda missão, pelo que, a 11 de Fevereiro de 1997, o último batalhão português na IFOR, o 3º BIAT, transferiu a autoridade para o primeiro batalhão português da SFOR, o 1º Batalhão de Infantaria Motorizado da Brigada Mecanizada Independente (1º BiMoto).

Esta continuidade foi reforçada pelo facto do contingente nacional na SFOR ocupar sensivelmente a mesma zona do teatro de operações: o 1º BiMoto, constituído por 330 militares, aquartelou-se em Rogatica e Vitkovici. Nessa zona de operações executou o mandato de manutenção da paz e da ordem de forma exemplar, em patrulhamento e monitorização diária da situação no terreno, bem como apoiando a actividade de outras organizações presentes na Bósnia. O sucesso da SFOR no cumprimento do seu mandato e a evolução registada na Bósnia conduziram a reestruturações da força em 1999 e 2003, mantendo-se a presença portuguesa, embora a sua missão fosse sendo sucessivamente alterada.

Na sequência da primeira reestruturação, em Fevereiro de 2000, o contingente português foi transferido do aquartelamento de Rogatica para o de Visoko, onde integrou a reserva operacional terrestre da SFOR. Durante esse tempo, esteve sempre em prontidão para o apoio que fosse solicitado às unidades com sectores atribuídos em todo o território da Bósnia. Por outro lado, a reestruturação de 2003 favoreceu um maior protagonismo das forças nacionais no terreno, uma vez que passaram a chefiar um Multinational Battle Group, aquartelado em Doboj, no norte da Bósnia, cumprindo um mandato de prevenção ao reacendimento das hostilidades e apoio à actuação das organizações internacionais e humanitárias presentes no terreno. A SFOR constitui um exemplo de missão de manutenção da paz bem sucedida, o que porventura explica as recentes declarações do Secretário-Geral da OTAN anunciando, na sequência da Cimeira de Istambul da organização, o fim da missão SFOR, e a assunção pela União Europeia de novas responsabilidades no terreno.

 

Outros cenários – a KFOR e outras Operações Militares

Em 1998 o exército sérvio lançou uma ofensiva militar na província do Kosovo destinada a aniquilar o partido independentista kosovar (KLA – KosovoLiberation Army) e todos os seus apoiantes, que tinham até então procurado, sem sucesso, conseguir concessões de autonomia do poder sérvio através de uma política de resistência pacífica. Este conflito gerou uma grave crise humanitária no terreno, com milhares de refugiados a chegarem às fronteiras da Albânia e Macedónia, alertando a comunidade internacional para o risco de um reacender do conflito em todo o território jugoslavo, sobretudo nas zonas que tinham escapado quase incólumes à vaga de violência, nomeadamente a Albânia e Macedónia. Em resultado de vários esforços de negociação e dissuasão levados a cabo pela comunidade internacional, em meados de 1999 foi finalmente assinado o Acordo Técnico-Militar entre a Sérvia e a comunidade internacional, pelo qual a Sérvia aceitava a retirada das suas forças do terreno contra o envio de uma missão de paz para o terreno e a desmilitarização do KLA. A missão militar da OTAN no Kosovo – KFOR (Kosovo Force) – surge na sequência deste acordo. Ela foi precisamente desenhada para evitar o reacender do conflito, vigiando o cumprimento dos termos do Acordo, bem como para apoiar os esforços humanitários na região levados a cabo pela UNMIK (United NationsAdministration Mission in Kosovo) e outras organizações humanitárias civis.

A decisão da participação de Portugal na KFOR foi muito menos consensual que nas anteriores. “A atitude de sectoressignificativos da elite portuguesa emrelação ao Kosovo contrasta fortementecom a atitude em relação à Bósnia quese traduziu num apoio expressivo àparticipação das forças portuguesas (2).” Nesta missão, cuja legitimidade se contestava por ser uma clara interferência na soberania da Sérvia e uma cedência europeia à vontade unilateral americana, generalizou-se o desagrado pelo envio de tropas nacionais com manifestações de protesto em diversas cidades portuguesas e acesos debates na Assembleia da República e nos media. Este cenário de desaprovação condicionou a actuação do governo na matéria, que, impossibilitado de invocar o interesse nacional, optou por procurar a legitimação da intervenção num discurso internacionalista, de apelo ao cumprimento dos compromissos assumidos junto dos parceiros europeus e na grave situação humanitária e de abuso dos direitos humanos. Contrariando a opinião pública e largos sectores da classe política nacional, o governo enviou, em Junho de 1999, um batalhão da Brigada Aerotransportada Independente (BAI), um Destacamento de Operações Especiais e um Destacamento de Controlo Aéreo Táctico, totalizando 319 militares o contingente nacional que, executaria o mandato da KFOR integrado numa missão de comando italiano a operar na região de Klina, a oeste do Kosovo. Apesar da KFOR se manter hoje no terreno, Portugal foi retirando gradualmente o seu contingente militar do Kosovo até Fevereiro de 2002, permanecendo apenas oficiais de ligação junto do comando da força multinacional em Pristina e alguns outros elementos de apoio médico-sanitário, cuja retirada ocorrerá durante 2004. O regresso do contingente português a Lisboa é uma consequência do concomitante envio de um forte contingente militar português para Timor-Leste. Tendo em conta as contingências financeiras e operacionais das Forças Armadas Portuguesas, aliadas a uma generalizada falta de apoio à missão portuguesa na KFOR, decidiu-se a retirada do nosso contingente, mantendo, contudo, forças na Bósnia e participando esporadicamente em diversas operações multinacionais nos Balcãs.

Como exemplos destas missões de carácter e duração mais limitados pode-se referenciar a Operação Task Force Fox, na Macedónia, entre Outubro de 2001 e Março de 2003, em que militares portugueses deram protecção aos monitores eleitorais internacionais enviados pela OSCE, ONU e UE, ou a Operação Albania Force, destinada a garantir a utilização do aeroporto de Tirana e do porto de Durres e dessa forma manter abertas as linhas de comunicação que ligam estes pontos ao Kosovo. Mas não só de militares se fez o contributo português para o sucesso da paz na ex-Jugoslávia. Um outro contributo importante consistiu no envio de forças policiais portuguesas para as missões da ONU na Bósnia e no Kosovo, bem como para missões de organizações regionais como a OSCE e a UEO. No total, e desde 1992 até hoje, estiveram presentes no terreno cerca de 650 elementos da PSP, sendo “o desempenho dos elementos da PSP que integram as missões de paz da ONU, nomeadamente na Bósnia, elogiado pelas Nações Unidas e os polícias portugueses (...) dos mais escolhidos para integrar postos de chefia”, como confirma o superintendente Chumbinho, do Comando-Geral da PSP, responsável pelo planeamento e coordenação destas missões.

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Consequência das missões em Portugal

Em todas estas missões, a contribuição de Portugal foi positiva, não só para o sucesso da missão como também, no plano interno, para a revitalização da instituição militar portuguesa e para uma maior relevância de Portugal na cena internacional. De facto, as mudanças a nível interno foram enormes, tanto no plano da instituição militar como no campo conceptual de política externa portuguesa. A participação em missões de paz exigiu, em primeiro lugar, grandes ajustamentos no seio das Forças Armadas Portuguesas, que fizeram um esforço de adaptação aos novos cenários de ameaças e envolvimento militar. Este ajustamento passou não só pelo redimensionamento, reestruturação e reequipamento das forças, mas sobretudo, por evoluções ao nível doutrinário e conceptual. Desde 1996 foram introduzidos nos programas de instrução militar módulos específicos relacionados com o treino e código de conduta em missões de paz. Estes novos programas dirigem-se primeiramente aos oficiais superiores dos três ramos, mas acabam por contribuir indirectamente para a preparação de todos os militares nesta área, uma vez que estes oficiais são depois responsáveis pela formação ao nível das unidades.

Por outro lado, desde 1994 que sucessivos Conceitos Estratégicos de DefesaNacional revelam uma nova preocupação com a adaptação das forças nacionais aos níveis e modelo das restantes forças aliadas, como elemento essencial para a satisfação dos compromissos assumidos por Portugal no seio dessas alianças. O Conceito Estratégicode Defesa Nacional mais recente, publicado em 2003, considera que as operações de paz são “uma opção consolidada que prestigia o País”. Acrescentamos que prestigia também a própria instituição militar, que vê renovado o seu papel na sociedade portuguesa e internacional. O dinamismo introduzido pela participação em missões de paz internacionais revitalizou a carreira militar e é um dos elementos mais importantes a ter em conta nos novos desafios que se desenham a esta instituição, nomeadamente no seu percurso de profissionalização.

Em termos de política externa portuguesa, esta participação activa nas operações de paz multinacionais no quadro europeu veio marcar um redireccionamento das nossas opções estratégicas. Ela foi a chave de uma opção europeísta que rompe com a tradicional postura de neutralidade portuguesa face ao jogo político-militar europeu. Por outro lado, veio trazer uma nova dinâmica e peso negocial a Portugal, que se torna um parceiro activo na mesa das negociações e vê assim as suas opiniões serem levadas em consideração na soma dos votos. Em suma, “a participação de militares portugueses (...) em operações de paz, seja na Europa, seja em África, testemunha o empenho de Portugal em acompanhar os seus aliados e parceiros nos processos hoje disponíveis para a prevenção e resolução de conflitos; testemunha igualmente a capacidade demonstrada pelos militares portugueses para desempenharem as novas missões que hoje se deparam à generalidade das Forças Armadas.” (3)

 

Informação Complementar

BALANÇO DE VÍTIMAS E PROBLEMAS DE SAÚDE DURANTE A IFOR

Apesar do sucesso no cumprimento da sua missão, esta não foi uma intervenção sem baixas. Durante o ano de 1996 registaram-se quatro vítimas mortais, duas fruto do rebentamento acidental de um engenho explosivo no quartel a 24 de Janeiro, poucos dias depois da chegada dos militares ao terreno, e outras duas na sequência de um acidente com uma viatura blindada, a 6 de Outubro. Para além das vítimas mortais, registaram-se ainda dezassete feridos em missão, na sua maioria consequência do rebentamento inesperado de engenhos explosivos. Já na fase do pós-deslocamento, em 2002, surgiram suspeitas quanto à possibilidade de contaminação com urânio empobrecido dos militares que estiveram presentes em missões de paz na ex-Jugoslávia e Timor-Leste. Após a realização de um exaustivo rastreio, não foi na altura confirmado qualquer vestígio significativo da substância nos militares nacionais, nem qualquer doença a ela atribuível. Recentemente, o Ministério da Defesa veio a assumir responsabilidade pela doença de um ex-militar das missões da Bósnia e Timor-Leste, ainda que não se tenha confirmado como causa da doença a exposição a urânio empobrecido.

 

BREVE CRONOLOGIA DA GUERRA NOS BALCÃS

1991
25 Jun –
Croácia e Eslovénia proclamam a sua independência e separação da Federação Jugoslava; dois dias mais tarde o exército jugoslavo intervém mas é rapidamente derrotado na Eslovénia; o conflito na Croácia prolonga-se.
7 Jul –
Acordo de Brioni cria a missão de monitorização europeia (ECMM-YU).
26 Set –
O Conselho de Segurança da ONU decreta um embargo de armas a todas as repúblicas da Jugoslávia (Resolução 713).

1992
Jan – A Comunidade Europeia reconhece a independência das duas repúblicas.
Fev –
O Conselho de Segurança da ONU cria a Força de Protecção das Nações Unidas – UNPROFOR (Resolução 743).
3 Mar –
Bósnia Herzegovina proclama independência, mas os sérvios bósnios cercam Sarajevo e ocupam quase 70% do território.
27 Abr –
Sérvia e Montenegro anunciam a constituição da República Federal da Jugoslávia.

1993
8 Abr – Ex-República Jugoslava da Macedónia declara independência.

1995
21 Nov – Acordos de Dayton abrem caminho à paz na Bósnia e prevêem envio de força multinacional de imposição da paz (IFOR).
15 Dez –
Conselho de Segurança da ONU autoriza constituição da IFOR (Resolução 1031).

1996
Jan – Início da missão IFOR.
12 Dez –
Conselho de Segurança da ONU autoriza constituição da SFOR (Resolução 1088).

1997
Jan – Envio da missão SFOR.

1998
Mar – Hostilidades começam no Kosovo entre a maioria albanesa e os sérvios.
23 Set –
Conselho de Segurança da ONU aprova a Resolução 1199 exigindo cessar-fogo e retirada das tropas sérvias.

1999
Mar – Após repetidos avisos e rondas negociais fracassadas, a OTAN lança ataques aéreos sobre o Kosovo.
Jun –
A Jugoslávia aceita finalmente a retirada do Kosovo e a entrada de uma força de paz mandatada pela ONU – envio da KFOR (Kosovo Force).

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1 “History of the NATO-led Stabilisation Force (SFOR) in Bósnia and Herzegovina” – disponível online em http://www.nato.int/sfor/docu/d981116a.htm.
2 VASCONCELOS, A. – “A Europeização da Política de Defesa”, Estratégia Revista de Estudos Internacionais. Nº 14, 2º semestre 1999, p. 13.
3 Decreto-Lei n.º 233/96 de 7 de Dezembro que define o estatuto dos militares em missões humanitárias e de paz no estrangeiro.

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* Carolina Cordeiro

Licenciada em Relações Internacionais pela Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Pós-Graduada em Direitos Humanos e Democratização pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Doutoranda em Ciência Política e Relações Internacionais na Universidade Católica Portuguesa.

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