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- JANUS 2006 -

Janus 2006



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Os direitos culturais do sujeito face à globalização liberal

João Maria Mendes *

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A luta por novos direitos culturais vai tornar-se protagonista do combate à globalização liberal-conservadora? O presente artigo comenta esta questão, à luz de propostas recentes do sociólogo Alain Touraine. Comecemos por tentar dar conta de um estado de coisas sob a forma de teses, evidenciando apenas os seus traços decisivos:

O modelo de globalização em curso é uma forma expectável de desenvolvimento do capitalismo, em que a economia conseguiu separar-se da sociedade e da política, desarmou e desestruturou uma e outra e mantém sobre elas uma nova hegemonia ou dominação. Os seus agentes vêm vencendo a guerra que consiste em demonstrar que nenhuma regulação social ou política da economia mundializada é ainda possível ou desejável.

Todos os dias, as deslocalizações de empresas e capitais e o progresso do desemprego (por exemplo na totalidade da UE), mostram-nos que estão a desaparecer do cenário global as autoridades capazes de limitar a liberdade de acção da economia mundializada.

Mais: a maioria dos Estados nacionais e a própria UE consideram que é “natural” e inevitável que a economia tenha tomado “o freio nos dentes” e comande a vida mundial — foi nesta abdicação que acabou por traduzir-se a defesa da “lógica de mercado”.
A Europa, em particular, parece ter assumido uma obsessão económica, que, ironicamente, dificulta o seu próprio processo de globalização: limita-se à defesa do dogma da redução do défice público e da doutrina anti-inflacionista.

As instituições com poder efectivo sobre o cenário económico global — parte da banca sobretudo americana, Fundo Monetário Internacional, Banco Mundial e Organização Mundial do Comércio (para não falar das instituições “invisíveis”, como os fundos de pensões norte-americanos) – impõem a lógica económica aos Estados, e não objectivos sociais e políticos aos actores económicos globais. Ou seja, são elas próprias agentes deste modelo de globalização.

 

O “fim” da sociedade

A principal consequência do progresso desta globalização é a erosão crescente da ideia de sociedade como macro-sistema regulador de referência, sedimentado ao longo dos processos de industrialização. As sociedades contemporâneas estão a des-socializar-se, a começar pelas que entraram pior no programa globalizador.

O capitalismo que, através da taylorização e fordização do trabalho, instalou as sociedades industriais, foi constrangido a negociar, com sindicatos, movimentos sociais, parceiros vários, formas de responsabilidade social que conduziram — a meio e no final da Segunda Guerra Mundial, em situação de crise extrema — ao plano Beveridge de 1943, instituidor, na Grã-Bretanha, do Welfare State , e em 1945 à criação da Sécurité Sociale francesa. Em movimento separado, os países escandinavos e o “capitalismo renano” alemão conseguiram estabilizar modelos societários tão ou mais fiáveis que o inglês e o francês. A adaptação destes modelos ao quadro transnacional foi tentada décadas depois por Jacques Delors, com o “modelo social europeu”, mas a Europa já não estava em condições de o impor e regulamentar. De facto, toda essa paisagem social se vai tornando, diante do nosso olhar, num mar de ruínas e memórias.

Hoje, nem sindicatos nem movimentos sociais, que nunca conseguiram protagonizar a transposição da sua acção nacional para o quadro europeu, e ainda menos para o quadro mundial, têm capacidade para se defrontarem com os agentes da globalização e com a economia mundializada, nem para descreverem a natureza dos conflitos em formação ao nível mundial. A burocracia sindical europeia, por exemplo, parece afónica. A mudança de escala das conflitualidades, a desterritorialização dos decisores e das empresas e a volatilidade de uns e outras, suprimiu parte dos contendores. É por isso que o Fórum de Porto Alegre e o movimento “altermundialista” surgem hoje, face ao modelo de globalização em curso, no papel dos sindicatos no início da industrialização. Não são oposições eficazes, mas sim estufas onde crescem futuros negociadores.

 

A crise do Estado nacional

A perda, por parte das sociedades, do controlo de mecanismos reguladores da actividade económica, acelera o tão comentado declínio do Estado nacional, simultaneamente posto em causa, sobretudo na Europa, pelas complexas integrações políticas supranacionais. O cidadão europeu tem cada vez mais a percepção da pertença a conjuntos mais vastos do que o seu Estado nacional, ou menores do que ele (região, aliança entre regiões). O Estado nacional está, assim, a ser espartilhado por entidades que lhe são exteriores e o dispensam, sejam maiores ou menores do que ele.

E o mesmo acontece com a sociedade, por via de outro efeito da globalização — o esboroar da antiga “pirâmide social”: os mais ricos (a que os media têm chamado golden boys ) já não estão no topo da sociedade, mas acima e fora dela; e os mais pobres (desempregados, trabalhadores precários) já não são a sua base, estão abaixo dela e igualmente fora da pirâmide. Os primeiros não precisam de “segurança social”, os segundos são cada vez menos “cobertos” por ela.

O movimento “altermundialista” surge, na esfera transnacional, como esboço de oposição à globalização. Mas em cada sociedade, o protagonista do descontentamento são as classes médias, que se sentem ameaçadas de morte. A globalização refaz as elites societárias, reduzindo a sua dimensão. Tendencialmente, o espaço intermédio entre os muito ricos, rarefeitos, e os pobres, em número crescente, esvazia-se, perde habitantes. As classes médias perceberam que, ou são metamorfoseadas em ricos pela globalização, que seria o seu Midas, ou o seu destino é o empobrecimento.

Todos estes fenómenos a que aludimos não são síncronos: envolvem contradições, compassos de espera e involuções parciais, fruto das mutações da relação de forças em presença. Mas constituem o veio principal da mudança social global que estamos a viver.

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Holistas e sujeitos individuais

Muitas destas teses, encontramo-las desenvolvidas no último livro de Alain Touraine (1), nascido em 1925 e que, tendo começado por trabalhar na esteira de Georges Friedman em sociologia do trabalho, se notabilizou pelo projecto teórico que o levou ao “accionalismo” e à “intervenção sociológica”.

Touraine, que nos últimos anos publicou reflexões sobre o regresso do sujeito individual à acção em sociedade (2), as alternativas ao liberalismo económico (3) e os paradoxos e desafios da multiculturalidade (4), defende aqui que, diante da morte do paradigma político e do paradigma social, só o regresso ao “sujeito”, ao indivíduo consciente da sua importância como factor de mudança, permitirá enfrentar as novas sujeições impostas pela globalização da economia entregue a si própria.

E esse regresso envolve — não é vocabulário seu — uma nova rotura epistemológica, que ele designa por “novo paradigma cultural”.

A mundialização da economia, diz ele, e a des-socialização que ela provoca, acompanhada por violências multiformes, estimularam duas frentes de reivindicações culturais:

Uma, “neo-comunitária”, exprime-se no regresso salvífico a grupos de pertença holísticos onde o sujeito individual se dilui ou se apaga. “No final do séc. XIX europeu, a passagem das comunidades à sociedade, das identidades colectivas ao reino da lei, surgiu como um enorme progresso. Vivemos agora um movimento inverso, o retorno às comunidades fechadas em si mesmas, dirigidas por poderes autoritários e que rejeitam como inimigas as outras comunidades?”

A outra, fruto, em grande parte, da marcha inexorável do individualismo, é a do “regresso a si” do sujeito individual como protagonista de mudança. Mas “o sujeito individual não existe — diz ele— se (...) não for universal. Como a modernidade , sua expressão histórica, ele assenta em dois princípios fundamentais: a adesão ao pensamento racional e o respeito pelos direitos individuais universais (...). Historicamente, o sujeito moderno encarnou primeiro na ideia de cidadania, que impôs o respeito pelos direitos políticos universais sobre todas as pertenças comunitárias. Uma expressão importante da separação entre cidadania e comunitarismo foi a laicidade, que separa o Estado das Igrejas”.

Tentei, noutro lugar (5), descrever as reconfigurações da “teoria da pessoa” num mundo em processo de laicização e de “desencantamento”, salientando que o “indivíduo” moderno e a sua subjectividade se enraizam no séc. XVII mas que ele só nasce politicamente com a consagração do voto individual pelas Revoluções Americana e Francesa, desta emergindo o “cidadão”. O “sujeito” da psicanálise, no início do séc. XX, reconfigura de novo a ideia de pessoa, dividindo-a e clivando-a em instâncias diferenciadas de auto-reconhecimento. A ideia contemporânea de cidadão herda todo este percurso, discutindo, ou não, o peso configurador do individualismo, irmão da própria modernidade. Mas o sujeito de que fala Touraine, sem questionar este percurso, é o sujeito cartesiano, capaz de dar conta de si como totalidade teleologicamente orientada.

 

Sociologia do sujeito

É este o discurso que se espera de um sociólogo, obrigado ao conhecimento positivo e verificável das situações e dos actores sociais? A resposta de Touraine não podia ser mais clara: “Não há, hoje, outra sociologia possível. Do mesmo modo que é impossível descrever uma sociedade esquecendo o facto da religião (...), é hoje impossível não reconhecer a presença do sujeito (...), não reconhecer que são cada vez mais os seres humanos que avaliam os seus actos e a sua situação em termos de capacidade para se criarem a si próprios e para viverem livres e responsáveis (...). A morte de Deus não levou ao triunfo da razão e do cálculo, nem, inversamente, à libertação dos desejos: levou cada indivíduo a afirmar-se como criador de si próprio, finalidade da sua própria acção”.

Esta forma de pensar pode evocar antecedentes tão diversos como o personalismo de Emmanuel Mounier, o repli sur soi de Michel Foucault ou o conjunto das filosofias políticas que se centram na defesa da pessoa individual apenas limitada pelo pacto social (e que, no espectro político europeu, deram origem a formações centristas de inspiração cristã). Mas o que Touraine defende é que o pacto e o contrato sociais estão a desfazer-se sob a globalização dirigida pela economia e que a aposta no sujeito e sua intervenção é a última esperança de reagregar o que este modelo de globalização separou.

E o que ele propõe é a releitura das lutas pela cidadania plena de todas as minorias, mas sobretudo da luta das mulheres — seu ícone maior — como percursos de afirmação de sujeitos individuais. O sujeito de Touraine encontrará, assim, a sua génese nas lutas recentes por liberdades fragmentárias e parciais. Essas lutas inscrevem no sujeito singular a marca de uma projecção colectiva que não o faz abdicar da sua identidade e liberdade, antes se alimenta delas. O destino do sujeito livre é, assim, inverso do destino do militante, que sempre acaba por ter de abdicar de si próprio. De regresso à contra-cultura dos anos 60-70? Talvez não:

O que separa o percurso deste sujeito do holismo comunitarista é a tensão universal-singular por ele protagonizada, e que é um dos temas centrais do pensamento de um J. -P. Sartre (que Touraine não cita). O sujeito contemporâneo é o protagonista da luta pelos novos direitos culturais identitários, mas “os direitos culturais, como os direitos sociais antes deles, podem tornar-se instrumentos anti-democráticos, autoritários ou totalitários, se não estiverem estreitamente ligados aos direitos políticos, que são universalistas, e se não se situarem no seio da organização social, e especialmente do sistema de repartição da riqueza”.

Que são, então, os direitos culturais destinados a desenhar a mudança de paradigma? Aqueles que definem a reivindicação de identidade e diferença por cada sujeito na situação de criador de si próprio. “Durante o período dominado pelo paradigma social — diz ele — foi a luta pelos direitos sociais (em particular pelos direitos dos trabalhadores) que ocupou o centro da vida social e política. Hoje, a instalação do paradigma cultural dá o primeiro plano à reivindicação de direitos culturais, que se exprimem sempre na defesa de atributos particulares, mas conferindo-lhes sentido universal. Sobre as ruínas da sociedade enfraquecida e destruída pela globalização, emerge um conflito central entre forças não-sociais reforçadas pela globalização (...) e o sujeito, privado do apoio dos valores sociais que foram destruídos”.

Por outras palavras, trata-se de direitos identitários, mas assentes na liberdade individual e não em comunidades, mesmo se estas são valores instrumentais no decurso de um conflito — caso das lutas pelo direito à interrupção voluntária da gravidez, pelos direitos sexuais, pela cidadania plena das mulheres, e de tantas outras.

Disse, atrás, que o protagonista do descontentamento, nas sociedades em des-socialização, são as classes médias, mortalmente ameaçadas. Isso significa também que o sujeito de que fala Touraine, atribuindo-lhe um valor quase-messiânico, nascerá nas classes médias, ou não nascerá.

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Informação Complementar

SOCIEDADE DE RISCO E CULTURA POLÍTICA

A sociedade de risco , de Ulrich Bech, está a fazer 20 anos. A primeira edição foi naturalmente a alemã, em 1986. Mas o livro só foi traduzido para inglês em 1992 e para francês em 2002, o que explica as descontinuidades na sua recepção.

O sociólogo, nascido em 1944, propunha então uma ideia provocadora, a de que as nossas sociedades perderam a capacidade de controlar os riscos inerentes ao seu próprio crescimento. Em primeira linha de análise, o sistema de tomada de decisões em matéria de tecnologia, fugido por completo ao controlo político, salvo no caso dos programas nucleares. A indústria passou a gozar de uma dupla vantagem face a governos e parlamentos, dizia ele: decide autonomamente sobre investimentos e tem o monopólio da aplicação das tecnologias.

Os parlamentos não votam a utilização ou o desenvolvimento da micro-electrónica, das tecnologias genéticas ou a alimentação do gado destinado a consumo. As indústrias gozam do poder decisório primário, sem terem de assumir responsabilidades no que toca ao risco que geram. Os políticos têm de se esforçar para se manterem ao corrente do que se passa em matéria de desenvolvimento tecnológico, e a maioria do que sabem depende dos media . Mas quando alguma coisa corre mal, são eles que respondem por decisões que não tomaram ou por efeitos que ninguém soube prever.

Assim se instalou um regime de inseguranças que atinge a vida de cada um em matéria de hábitos alimentares, de consumo de medicamentos, de qualidade dos transportes privatizados, e que se vai estendendo a um número cada vez maior de usabilidades quotidianas e universais.

O risco, na verdade, não é assumido por ninguém. E o “governo de ninguém”, escreveu Anna Harendt, é a pior das tiranias, porque é estruturalmente irresponsabilizante. As populações, por seu turno, só tomam consciência da situação diante de catástrofes de que se perdeu o controlo — o caso das vacas loucas é paradigmático. Então, a máscara das democracias burocráticas contemporâneas cai, e o rosto que mostram é o da irresponsabilidade organizada.

Eis um diagnóstico que se articula bem — à distância de duas décadas — com a descrição da globalização feita por Alain Touraine. A mundialização da economia entregue a si própria, que conseguiu menorizar o controlo do Estado e das sociedades sobre a sua acção, e que deslocaliza cada vez mais o trabalho produtivo para territórios de mão-de-obra barata e sem tradição sindical, potencia ainda mais os riscos não testados e a respectiva irresponsabilização.

As soluções propostas por Beck para a situação diagnosticada eram ambiciosas: seria necessário repolitizar as decisões e abri-las a exame e debate público. As decisões económicas das grandes empresas, o desenvolvimento de novas tecnologias, em certos casos os programas de investigação científica, deveriam ser legal e institucionalmente enquadrados e obter legitimação democrática. Em 1986 como hoje, tal programa mantém a sua actualidade provocatória.

Desde A sociedade de risco , Beck publicou mais uma dezena de livros. O penúltimo, de 2003, chama-se América global? As consequências culturais da globalização . Franceses e ingleses traduziram-no nesse mesmo ano.

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1 Un nouveau paradigme — pour comprendre le monde d'aujourd'hui , Fayard 2005.
2 La recherche de soi. Dialogue sur le sujet (com F. Khosrokhavar), Fayard 2000.
3 Comment sortir du libéralisme? , Fayard 1999.
4 Pouvons-nous vivre ensemble? Égaux et différents , Fayard 1997.

5 Por quê tantas histórias , Coimbra: Minerva 2001.

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* João Maria Mendes

Licenciado em Filosofia pela Universidade de Lovaina (Bélgica). Doutorado em Ciências da Comunicação pela Universidade Nova de Lisboa. Docente na Escola Superior de Cinema e Teatro e na UAL. Subdirector do Observatório de Relações Exteriores da UAL. Responsável pelo Projecto Janus Online.

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