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Janus 2006



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Políticas culturais e governança cultural

João Maria Mendes *

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A Declaração Universal da Unesco sobre a Diversidade Cultural (2001) define a cultura como “o conjunto dos traços distintivos espirituais e materiais, intelectuais e afectivos, que caracterizam uma sociedade ou um grupo social e em que se englobam, para além das artes e das letras, os modos de vida, as formas de vida em comum, os sistemas de valores, as tradições e as crenças” (1). A definição não inclui explicitamente o património, mas o art. 7.º do mesmo texto diz que “o património, em todas as suas formas, deve ser preservado, valorizado e transmitido às gerações futuras como testemunho da experiência e das aspirações humanas”.

A Declaração acrescenta que a cultura “está no centro dos debates contemporâneos sobre a identidade, a coesão social e o desenvolvimento de uma economia baseada no saber” e que, “fonte de trocas, de inovação e de criatividade, a diversidade cultural é, para a espécie humana, tão necessária como a biodiversidade para o conjunto dos seres vivos”.

No seu art. 11.º, o mesmo texto afirma que “por si só, as forças do mercado não podem garantir a preservação e a promoção da diversidade cultural, condição de um desenvolvimento humano durável”, e que “convém reafirmar o papel primordial das políticas públicas, em parceria com o sector privado e a sociedade civil”.

 

Reconceptualização

Quando pensamos sobre a mutação contemporânea da ideia de cultura, vale a pena ter presentes as sucessivas declarações e relatórios que exprimem o trabalho recente das organizações internacionais que dela se ocupam (além da Unesco, o Conselho da Europa é outra fonte incontornável nesta matéria). Ora, ao articular cultura com identidade, coesão social e desenvolvimento económico, a Unesco projectou uma definição convencional de cultura para um território não convencional, favorecendo a reconceptualização dos seus domínios.

Tal reconceptualização surge, por exemplo, no relatório-síntese dos Encontros de Delfos, promovidos em 2001 pelo Conselho da Cooperação Cultural do Conselho da Europa: “Artes, ciências, desportos, ética (incluindo a religião), educação, informação, desenvolvimento dos patrimónios, constituem o domínio cultural, sob condição de lhes juntarmos a dimensão cultural dos outros domínios sociais: respeito da diversidade e dos direitos culturais nas migrações, nas governanças sociais, económicas e da saúde...” (2).

Esta “nova” transversalidade dos domínios da cultura propiciou a reflexão, hoje muito partilhada, sobre a “governança cultural”: ao contrário das práticas de governo, que são biunívocas (Estado / indivíduo) e coercivas (exercem-se pelo poder de Estado), a governança é um sistema de interacções entre actores individuais e institucionais que partilham a responsabilidade pelo bem comum em espaços públicos adequados; esse sistema é regulado pelos Direitos Humanos e pelos princípios do Estado de direito.

A proposta de uma “governança cultural” foi, em grande parte, gerada pela necessidade de substituir a credulidade política pela confiança democrática: o cidadão é tendencialmente crédulo até perceber que as instituições que o representam e condicionam se deixam perverter pela burocracia, pelo autismo ou pela corrupção. Então, torna-se mais disposto a não delegar totalmente as suas responsabilidades nos actores públicos, privados ou “civis”. “O sujeito não é prisioneiro de um quadro político, antes reconhece, escolhe e compõe os meios de responsabilidade de que quer ser parte” (3).

Os “espaços públicos adequados” não se esgotam no sistema dos media , embora o incluam. As práticas de comunicação geram os seus próprios espaços públicos, que são condição da própria governança, e que é indispensável valorizar. Neste sentido, a “ágora” onde cientistas e teólogos discutem a clonagem é um espaço público adequado, como também o é o átrio fabril onde grevistas discutem o futuro da empresa, ou como as igrejas polacas foram o espaço público do “ Solidarinösc ” — ignorados, ou não, pelo “ agenda setting ” dos media .

A ideia de que os reguladores últimos da governança são os princípios do Estado de direito e os Direitos Humanos significa que ela não é movida pelo egoísmo individual, mas sim por valores “universais” socialmente entendidos como limites da liberdade individual, e portanto instrumentos de auto-sustentação da própria sociedade, guardiães da “ agalma ” grega. Por outro lado, ao articular políticas públicas, sector privado e sociedade civil como suportes da cultura, a Unesco está a substituir por um novo triângulo de responsabilidades os antigos binómios público / privado, Estado / ONG, sector privado / ONG, incapazes, na sua simplificação, de dar conta da dinâmica da “governança cultural”.

Os três actores de que fala a Unesco são supostos manter entre si relações de co-responsabilidade e de subsidiariedade: o Estado representa a soberania, que se transforma em políticas em nome do interesse público; o sector privado representa os seus próprios interesses, formulados na retórica do interesse público; e a sociedade civil exprime a acção associativa de sujeitos que também representam o interesse público, mas não são políticos eleitos em funções de Estado, são pessoas exercendo a sua cidadania individualmente ou em grupo. Todos eles são co-responsáveis pelos domínios de que se ocupam, e cada um deve impedir a “evasão” de um dos outros dessa co-responsabilidade.

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Definições estreita e larga

Outra forma de exprimir a reconfiguração contemporânea da ideia de cultura consiste em sublinhar a tensão entre a sua definição “estreita”, herdada da antropologia e ainda patente na Declaração da Unesco de 2001, e a definição “alargada” (mas que não pode incluir imprecisão).

Mesmo os defensores da definição “estreita” de cultura concordam em que ela já não corresponde ao inventário de sectores de que se ocupam os Ministérios da Cultura, cujos organigramas exprimem a tradição administrativa. Mas temem a “diluição” das suas componentes, ou subsistemas, preferindo manter a especificidade das artes e dos patrimónios como definitória do domínio. Por outro lado, dizem, a sectorização clara é muito mais eficaz, porque permite a definição e orçamentação de políticas visíveis, com base na relação custos-benefícios.

Os defensores do conceito “alargado” consideram que a manutenção da antiga definição, com os seus sectores bem articulados, não pode desvalorizar as interacções cada vez mais importantes com os outros domínios da vida social. Concretamente, tendem a entender o cultural como comunicação de valores que criam sentido, e que se entrecruza, nos espaços públicos, com a ecologia (comunicação da importância dos lugares), a economia (comunicação sobre os bens
materiais e serviços), e o social (comunicação das relações entre grupos/ indivíduos). Na prática, a tensão entre as duas definições tem conduzido a dois enfoques distintos: a definição “estreita” convém à concretização das políticas e à contabilidade do Estado; a definição “larga” convém à conceptualização, ao crescimento dos domínios da cultura no contexto da mudança social. Duas questões, uma interna, outra externa, exprimem a mudança conceptual a que nos
referimos. A questão interna é a dos critérios identificatórios dos subsistemas da cultura: hoje aceita-se que religião, educação e ciências são domínios culturais, como também o são arquitectura, urbanismo e ordenamento do território, mas sem perda da sua anterior autonomia. Eles não mudam de identidade, ganham uma segunda identidade. A ciência, por exemplo, torna-se tanto mais cultura quanto mais intervém na ordem natural, na redefinição da vida e da morte, no destino humano. A questão ex-terna é a do relacionamento com os outros domínios (ecológico, social, económico) e não é “ideológica”: para desenvolver uma criação teatral, por exemplo, gera-se interacção com um sistema de fontes (investigação, memória, arquivo), com a escola (ensino de competências específicas), com os media (informação/ divulgação) e com agentes económicos (financiadores, sindicatos de iniciativa).

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Informação Complementar

O PRÍNCIPE E O SALTIMBANCO

O debate sobre as políticas culturais diaboliza facilmente o sector privado, como se, ao contrário do Estado e da sociedade civil, ele nunca pudesse representar, na cultura, o interesse geral. Mas a “privatização” da cultura, se entendida como a apropriação de bens culturais públicos para efeitos de rentabilização, é frequentemente praticada pelo Estado.

A transformação da fortaleza de Sagres, e seu promontório, em monumento e território com horário de museu e entrada paga é um roubo feito pelo Estado à sociedade civil (projecto idêntico já foi discutido para o castelo de S. Jorge, em Lisboa), como seria cercar de gradeamentos o Centro Cultural de Belém ou os equipamentos do Parque das Nações, obrigando os cidadãos a pagar a entrada nos respectivos perímetros. Uma coisa é dotar de serviços pagos monumentos, lugares e instalações. Outra é torná-los a eles próprios em serviços pagos.

Ora, o mecenato privado não tem necessariamente operado por roubos deste tipo: se uma empresa toma à sua guarda (sem dela se apropriar) uma instituição como o Teatro Nacional D. Maria II ou o S. Carlos, está a desempenhar a sua função de subsidiariedade no triângulo de actores “poder político / sector privado / sociedade civil” de que depende a “governança cultural”.

Mas também sucede que o sector privado se fatigue desta função, como ocorreu em 2005 com a Fundação Gulbenkian, que abandonou o seu antigo papel de “Ministério da Cultura bis”, reorientando os seus investimentos para a formação.

Glosando uma expressão feliz de Jean-Pierre Saez num editorial do Observatoire des politiques culturelles (n.º 28, Outubro de 2003, Grenoble), “o príncipe e o artista [ou o príncipe e o saltimbanco] são duas figuras simbólicas em torno das quais foi geralmente construída a gesta das políticas culturais”. Mas, à medida que a economia se foi “libertando” da política, passando a contorná-la ou a ignorá-la, o príncipe tanto passou a ser oriundo do poder político como do económico. E é sinal de fraqueza da economia que o Estado se substitua ao sector privado com instituições e comportamentos que em tudo mimam os deste último, como em Portugal.

Na maioria dos países europeus, o Estado “cansou-se” de ser mentor, pai e patrão da cultura.Desde os anos 90, assistimos à abdicação progressiva dos Estados centrais a favor de poderes supletivos (regiões, por exemplo) que acompanham o desenvolvimento das novas redes culturais. O contexto cultural diversifica-se vertiginosamente e rejeita a sua antiga hierarquia, exigindo concertações mais complexas, só garantidas pela “governança democrática cultural”.

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1 Definição conforme com as conclusões da Conferência Mundial sobre as Políticas Culturais (MONDIACULT, México, 1982), com a Comissão Mundial da Cultura e do Desenvolvimento (“A nossa diversidade criadora”, 1995) e com a Conferência intergovernamental sobre as políticas culturais para o desenvolvimento (Estocolmo, 1998).
2 Patrice Meyer-Bisch, “ La notion de gouvernance culturelle ”, Conselho da Europa, Estrasburgo, 2002.
3 Id ., ibid.


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* João Maria Mendes

Licenciado em Filosofia pela Universidade de Lovaina (Bélgica). Doutorado em Ciências da Comunicação pela Universidade Nova de Lisboa. Docente na Escola Superior de Cinema e Teatro e na UAL. Subdirector do Observatório de Relações Exteriores da UAL. Responsável pelo Projecto Janus Online.

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Dados adicionais
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