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Uma década e uma advertência

Jorge Sampaio * e José Paulouro das Neves **

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Que representa, afinal, uma década no longo trajecto da Humanidade? Como será olhada esta que agora se cumpre e que atenção merecerá a quem couber registar, já longe do nosso tempo, este efémero percurso feito de expectativas, projectos, temores e esperanças? Porque – sabemo-lo bem – a memória de outros que muito antes de nós viveram, porventura com igual intensidade e desejo de deixar na terra a sua marca, limita-se hoje a uma breve referência numa página dos livros de história que compulsamos. E, no entanto, estes últimos dez anos não só testemunharam momentos e decisões que, para o bem e para o mal, se projectaram de forma significativa na vida das nações, como assistiram a progressos das tecnologias da informação e comunicação, que, de forma nunca antes experimentada, aboliram distâncias, transformaram comportamentos e vêm colocando aos Estados difíceis desafios de ajustamento e de governo.

Pouco antes, o fim da década precedente, ao presenciar o termo da glaciação do império soviético, abrira caminho a um desses recorrentes períodos de optimista confiança que atravessa épocas e povos. A queda do muro de Berlim ilustrou então numa cenografia memorável o triunfo das liberdades e a precariedade de regimes sustentados por opressões e prepotências. Depressa a Europa iria recuperar o seu mais autêntico rosto histórico, deformado durante demasiado tempo pela partilha injusta de Ialta e pelas barreiras de uma Guerra Fria que chegara a parecer interminável. Restaurada a independência dos países que Moscovo subjugara, muitos acreditaram estar-se à beira de uma nova ordem internacional, que – e era afinal simples utopia – se acreditava mais justa, mais equitativa, cimentada pelo direito internacional e por uma eficaz segurança colectiva. A par de declarações de responsáveis políticos, datam dessa altura as profecias de um Fukuyama inicial, decretando com afoiteza o fim da História, pela derrota final dos totalitarismos perante o triunfo do capitalismo e das democracias liberais.

Mas, porque é sempre útil recordar, lembremos que não tardaram a emergir, no próprio seio da Europa, sinais inquietantes que cedo destruiriam o velho e breve sonho de uma paz quase universal. O esfacelamento da Federação Jugoslava, com os seus insuportáveis horrores e cruzados ódios étnicos, iria conduzir à necessidade de uma intervenção militar da NATO, a que, apesar da controvérsia suscitada, certos chamaram de “guerra moral” por não ter como objectivo um interesse estratégico directo, mas a salvaguarda, sob a égide do direito humanitário, de populações civis sujeitas a um grau de abjecção que se pensara banido das terras europeias. Um nada mais longe, no Médio Oriente, o problema palestiniano continuava – por entre massacres no Líbano e respostas suicidas em Israel – a recordar a urgência de soluções diplomáticas para uma situação reconhecidamente corrosiva pela sua injustiça para a paz mundial. Também, quase inesperadamente, a torpe invasão do Kuwait mostraria a contingência dos optimismos pós-Guerra Fria, suscitando o último sobressalto de união da comunidade das nações para a reposição da legalidade internacional. Entretanto, aos poucos, um velho fenómeno histórico – o terrorismo – foi consolidando a sua nova face transnacional de destruição maciça, agora favorecida pelo fácil acesso a modernas tecnologias, ao surgir em Tóquio, Nova Iorque (já no World Center), ou no Egipto, no Quénia, na Tanzânia, na Rússia, numa antevisão da ameaça do que neste nosso século se iria infelizmente concretizar de forma cruel, mostrando ao mesmo tempo a vulnerabilidade dos Estados perante tão furtivo e insidioso inimigo.

Iria, porém, caber a esta década atravessar o render do milénio. Contudo, o “devagar depressa do tempo”, de que falava Guimarães Rosa, não tardou a mostrar que começava mal o século, manchado pela tragédia de Nova Iorque, depois repetida em Madrid, Londres, Bali, Beslan e outros lugares. Mal também, por ter sido um período marcado por opções unilateralistas, como a invasão do Iraque, que iriam abalar os alicerces do sistema da legalidade internacional, criando um perigoso precedente no preciso momento em que a globalização dos problemas aconselha às potências o abandono de estratégias individuais e antes recomenda políticas de reforço de solidariedades e colaborações. Mal ainda pela célere expansão de pandemias que desestruturam Estados e atrasam o desenvolvimento de continentes, perante a impotência de muitos e as desatenções de alguns. Mal, finalmente, pelo súbito avolumar de difusos riscos alimentados pela pregação de violências indiscriminadas assentes em irracionais ideologias fundamentalistas com perigosa capacidade mobilizadora ou pelo recente ressurgir da ameaça de uma desordenada proliferação nuclear.

Todavia, importa naturalmente dizer que nem tudo foi sombrio neste princípio do milénio, que consagrou a vitória da luta pela independência e a liberdade do povo de Timor. Igualmente, a consciência da necessidade de não permitir alargar brechas na linha de protecção dos relacionamentos humanos levou durante este período ao estabelecimento de instituições jurídicas internacionais e de decisões que constituem caminhos de inegável progresso: assim ocorreu com a criação dos Tribunais Internacionais ad-hoc (ex – Jugoslávia, Ruanda, Serra Leoa), do Tribunal Penal Internacional Permanente, ou, num outro plano, com o levantamento das imunidades de Milosevic, Pinochet e de Charles Taylor. Vitória, portanto, embora incompleta, na batalha pelos direitos humanos, triunfo da civilização sobre a barbárie, não obstante se estar ainda longe de alcançar um apoio universal que afaste resistências ancoradas numa rígida interpretação das soberanias ou em estratégias de poder hegemónico, ou de fugir ao frequente pecado de selectividades norteadas por interesses nacionais.

Não cabe, naturalmente, neste breve comentário, proceder à inventariação do muito que ocorreu nesta década, lançar em colunas de deve e haver o que nela constituiu o seu itinerário principal, nem avançar nos terrenos movediços de uma futurologia seguramente tão incerta como os desenvolvimentos que têm marcado nos nossos dias o caminho comum dos Estados – e dos povos. O catálogo seria longo, pois entre tantas outras coisas importaria ao menos aludir aos confrontos resultantes da ainda próxima intervenção militar lançada por Israel sobre o Líbano; à comprovação de um saliente caminho de poder encetado pela China e pela Índia; aos notórios erros praticados no combate antiterrorista; ao persistente enleamento do continente africano nos seus atrasos e exclusões; às perigosas estratégias de hegemonia fundadas na gestão de importantes recursos naturais; à incapacidade política da comunidade internacional em encontrar respostas adequadas às prementes questões ecológicas do planeta.

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Limitemo-nos, pois, a sublinhar três traços distintivos do período em exame, tanto pelo impacto que vêm projectando nas nossas vidas, como pelo que poderão representar para um progresso mais linear da sociedade mundial.

Desde logo, recorde-se que a presente ordem internacional deve gerir uma realidade que, embora se tenha já manifestado em outras épocas da história, assume agora uma inédita força que molda novas atitudes e a própria distribuição de poderes: a globalização. Sabemos em que consiste, mas valerá a pena assinalar alguns dos seus aspectos: a compressão do espaço e do tempo pela via do avanço tecnológico do sector das comunicações, a qual, pelo acelerar de contactos entre sociedades, culturas, indivíduos e sistemas jurídicos conduz a uma crescente densificação das interdependências; o estabelecimento de um espaço público de dimensão planetária, alimentado por uma omnipresente sociedade da informação e por novos actores internacionais que se têm apropriado de terrenos de influência, antes monopólio dos Estados; a brusca expansão de questões de amplitude global, desde os quase incontroláveis fluxos de capitais aos diversos tráficos, da porosidade das fronteiras ao domínio de pressões culturais hegemónicas. Consolidaram-se, assim, tendências anteriores que hoje marcam o nosso viver: o declínio do Estado-Nação, cujo ocaso alguns apressadamente profetizam, mas que os acontecimentos posteriores ao 11 de Setembro desmentem nas suas formulações mais excessivas, por terem mostrado que, não obstante a efectiva perda de anteriores instrumentos de supervisão, verifica-se afinal que vem reganhando espaços de manobra, nomeadamente pelo alargamento de certos dos seus poderes; o enfraquecimento dos governos nacionais face a uma bem mais livre actuação das grandes corporações económicas; a permeabilidade dos países às clandestinas tramas da criminalidade transnacional; as preocupantes projecções securitárias nos direitos individuais; o alargamento do fosso entre as nações que beneficiam da globalização e aquelas que se vão enleando nas suas carências, de que as dolorosas imagens quotidianas das migrações anárquicas constituem amarga ilustração; a crescente importância das ONG, apesar da persistência de ambiguidades do seu modelo de representatividade; ou a proliferação de movimentos que contestam com vigor as omissões dos governos quanto a alguns efeitos predadores da globalização, configurando esta (de formas crescentemente radicalizadas e de elevado poder mobilizador popular) como instrumento de dominação económica e veículo de estratégias de hegemonia cultural.

Retire-se, por isso, desta realidade uma conclusão: os extremos melindres e as tensões que decorrem deste tempo impõem um caminho: o reforço do sistema multilateral, como decisivo elemento regulador e indispensável quadro jurídico de mediação das relações internacionais. Aliás, a globalização, pela sua própria natureza, deverá ancorar-se na afirmação do direito, meio fundamental para garantir aos seus diversificados actores regras e protecções que viabilizem uma gestão mais justa dos múltiplos problemas e contenciosos, e assegurem maior equilíbrio ao jogo das diferenciadas interdependências dela resultantes, cada vez menos sujeitas às disciplinas do velho Estado vestfaliano. Porém, se é certo que a soberania deste vem apresentando fendas na sua antiga muralha de atribuições resultantes do confronto com as novas realidades da sociedade em rede, designadamente pelos processos de descentralização que esta implica, convirá lembrar que a legitimidade da ordem internacional permanece fundada nos Estados e no princípio tutelar, inscrito na Carta da ONU, da sua igualdade formal. Todavia, sabemos igualmente que o diverso poder efectivo dos países, as suas desiguais capacidades e níveis de desenvolvimento não ajudam ao estabelecimento e aceitação de disciplinas comuns. Isto se diz porque esta década deixa bem ilustrada a clara tensão entre escolhas unilateralistas e a ordem jurídica que rege a comunidade das nações, num vivo exemplo de que as estratégias de supremacia convivem mal com as regras do direito internacional. Não surpreenderá, pois, que durante ela se tenham multiplicado as críticas – por vezes legítimas – à ineficácia das organizações internacionais, à sua excessiva burocratização e à rigidez de modelos, a quebras na sua transparência e accountability, ao peso demasiado que as grandes potências ou alguns grupos de países ocupam no respectivo processo decisório. Com a passagem do milénio promoveram-se encontros de solene retórica e assinaram-se promessas; e, perante as rápidas mutações da realidade internacional, estudaram-se e pediram-se reformas que marcassem utilmente, através da sua revitalização, o aniversário das Nações Unidas, afinal raiz emblemática do sistema de acção colectiva para a resolução dos problemas mundiais. Compreende-se que tenha sido assim, tendo em conta a sustentada expansão do método multilateral, tanto no plano geográfico como no das competências, bem como o compreensível desencanto face às expectativas não cumpridas que o fim da Guerra Fria suscitara quanto a uma desejável capacidade de intervenção das várias faces do multilateralismo para uma melhor regulação de conflitos e contenciosos. Todavia, já se aceita com menor vontade, embora sabendo-se as razões dos desentendimentos, que se tenha adiado este ensejo para ajustar a ONU aos desafios do tempo (não mais Darfurs), assim contestando os detractores da legitimidade do projecto num devido apoio aos esforços de Kofi Annan, que naquela deixa uma marca de inteligente equilíbrio e de activa diplomacia.

Estas dificuldades revelam bem que estamos ainda longe de uma “governação global”, abrangendo no seu conceito mais comummente aceite novos mecanismos de regulação que, para além dos Estados, vinculem igualmente os numerosos actores transnacionais, públicos ou privados, formais ou informais. Ou, na síntese de um respeitado autor, “se o estabelecimento de organizações internacionais, congregando a comunidade dos Estados, foi a utopia dos séculos precedentes, a procura de um novo multilateralismo, englobando a comunidade dos homens, poderá bem ser a utopia deste milénio”. O realismo político, claramente ilustrado por algumas conhecidas opções da potência hegemónica, mostra que estamos com efeito neste domínio no campo de uma utopia de duvidosa, ou pelo menos de distante concretização. Razão de sobra para descermos ao plano do concreto e reafirmarmos antes a profunda convicção de que, hoje mais do que nunca, importa proteger o método multilateral, assente nos valores da Carta das Nações Unidas, decerto adaptando-o às presentes realidades e oferecendo-lhe uma maior accountability, pois nele encontraremos um quadro diversificado, a nível regional ou universal, para o debate, negociação e arbitragem das grandes questões e para a consolidação do direito e da justiça, como o caso de Timor bem demonstrou.

Neste decénio, a União Europeia voltou a mostrar o que se vem tornando como que um traço distintivo da sua natureza: oscilando entre dinâmicas concretizadoras e bloqueios decisórios, entre instantes de reforçada confiança e momentos de crispado abatimento. Assim ocorreu, apenas para citar alguns dos casos mais significativos, com o sucesso da criação e posterior lançamento do euro, verdadeiro instrumento federador; com a recomposição do mapa europeu, através da importante decisão geopolítica configurada pelo último alargamento; ou, no sentido oposto, com a desavença diplomática suscitada pela guerra no Iraque; e, naturalmente, com os resultados negativos dos referendos sobre o Tratado Constitucional na França e nos Países Baixos. Outras situações pontuaram o trajecto percorrido durante a década pela União, confrontada para além das questões institucionais com a inquietante dimensão do terrorismo internacional, com a segurança das suas fronteiras externas (mais porosas à acção do crime organizado), e com a exigência de promover uma efectiva capacidade de intervenção para a PESC, a que se tem procurado dar uma maior coerência institucional, outra flexibilidade, e úteis expedientes coordenadores, como as estratégias comuns. Lentamente – mas estamos afinal a falar de um domínio sensível das soberanias nacionais – algumas decisões abriram caminho nestes últimos anos a um desejável progresso da Politica Europeia de Segurança e Defesa, nomeadamente pelo estabelecimento de um orgão político-militar permanente (COPS), pela criação de uma Força de Reacção Rápida e de um Corpo de Polícia Europeia. Não obstante as dificuldades de um método decisório vinculado a lógicas intergovernamentais, foi possível à União melhorar a credibilidade do seu valor de intervenção diplomática na cena internacional ao destacar forças para a Bósnia, Macedónia, R. D. Congo, ultrapassando assim os terrenos de soft power a que geralmente se confina. Pouco? Sem deslocados júbilos, será talvez útil lembrar as fundas divergências que rodearam afinal há não muito tempo a origem da PESC no Tratado de Maastricht, aliás bem patentes na formulação do respectivo capítulo, ou evocar as sequelas das circunstâncias fracturantes como a União acolheu a guerra a Bagdad, ou ainda mencionar as dificuldades de estabelecer uma cultura comum de segurança, designadamente face a naturais diferenças de percepção política, agora ampliadas pelo alargamento aos países do Leste.

Resta, entretanto, superar a crise que durante a segunda metade desta década tem sacudido a União e que põe a descoberto diferentes visões sobre as finalidades últimas do projecto, falhas no indispensável cimento de confiança que deve ligar os seus membros, afloramentos negativos de egoísmos nacionais, e claras insuficiências na busca negocial e na concretização de compromissos fomentadores de cooperações e unidade. Aproxima-se, com efeito, o momento em que a União não poderá mais adiar o desafio que a História lhe coloca e que obriga dirigentes e povos a desatar o nó do actual bloqueio institucional – isto é, a definir o seu futuro. Terá que fazê-lo resguardando o essencial de uma unidade que tem sido garantia de progresso, não deixando sobretudo perverter os princípios vitais do modelo concebido por Monnet, que se tornaria factor emblemático de paz para o antigo “continente sombrio” – e também para o mundo.

Afinal, mais do que várias outras, talvez seja esta – decerto para nós europeus – a advertência maior que a década agora transcorrida nos deixa.

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* Jorge Sampaio

Ex-Presidente da República.

** José Paulouro das Neves

Embaixador. Professor Convidado da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

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