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- JANUS 2007 -



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Crise do Estado e "retorno do religioso"

António Matos Ferreira *

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A religião e a sua organização social constituíram sempre, ao longo de toda a história humana, um factor condicionante e essencial da política nas sociedades. Ao longo de muitos séculos, mesmo milénios, a relação entre religião e política foi de grande interdependência e de destrinça muito limitada. Esta situação caracteriza ainda hoje muitas sociedades, particularmente nos contextos onde a pertença e as convicções religiosas são utilizadas como elementos de agir político e de controlo social, nomeadamente através da fundamentação da lei; sendo que esta interpenetração entre o religioso e o político assume muitos matizes.

 

Estado e religião

O desenvolvimento dos Estados nas diferentes partes do mundo sempre incluiu um determinado tratamento do religioso, manifestando-se, com maior ou menor intensidade, uma concorrência entre a institucionalização do Estado e as várias organizações do religioso, fossem as Igrejas no sentido tradicional desta expressão, fossem os mais variados movimentos ou correntes religiosas agindo como dinâmicas sociopolíticas. Na época contemporânea, desde os finais do século XVIII, particularmente com as autonomias – as independências nacionais – das diferentes regiões continentais em relação ao domínio colonial europeu, verificou-se uma tentativa de fornecer à constituição dos Estados uma modelização da ordem política vasada e legitimada nas tradições liberais e sociais do Estado europeu ou estadunidense.

Quando, actualmente, se refere a “crise do Estado moderno”, o que surge como questão central é a sustentabilidade a todos os níveis do Estado como organização das sociedades nas suas formas democráticas fundadas na participação pela cidadania, enquanto instância de protecção e solidariedade sociais, enquanto garante da liberdade e da segurança individuais. Todavia, importa ter em conta que este processo comportou uma longa e complexa transmutação das noções de religião, de crença e de fides (fé como vínculo de fidelidade). A sacralidade e a dessacralização passaram a constituir instâncias e modos de formulação e de reformulação sociais e políticas, onde as relações societárias se tornam, em grande medida, baseadas em processos de contratualização e de consentimento. E, por sua vez, estas atitudes foram lentamente acompanhadas pela valorização da interioridade como instância do espiritual e da consciência, determinando o grau de confiança que se gera no plano dessas mesmas relações sociais e políticas. Em larga medida, o conjunto destes requisitos pressionou e pressiona as religiões, particularmente ao nível das suas formas institucionais, provocando campos de afrontamento, pois a relação entre cidadania e liberdade permite que no interior das sociedades, reivindicando a sua legitimidade, se formulem diferentes concepções e convicções sobre a realidade humana e o seu devir.

Mesmo a partir do século XVI, com a progressiva afirmação do Estado moderno ocidental, tal processo ocorreu ainda dentro de uma matriz de confessionalidade. Esta dimensão e característica dos primórdios do Estado moderno ocidental oferecia um princípio unitário de identificação e de pertença em torno do qual se definia a legitimidade do próprio exercício do poder político, consequentemente dos limites da legalidade das práticas sociais individuais e colectivas. Todavia, alguns factores foram contribuindo de forma paulatina para alterar este modo de equacionar a articulação entre a religião, elemento integrador das relações sociais, e a organização política das sociedades. Entre outros aspectos, a modernidade ocidental está associada e é compreendida como estabelecendo a autonomia mútua entre estes dois campos. É, contudo, um equívoco de leitura histórica considerar-se que este processo ocorreu de uma assentada ou que se encontra encerrado.

Apesar de ter havido formas de tolerância religiosa no interior da cristandade medieval ou no interior dos impérios muçulmanos, esta determinava-se pela subordinação dos credos religiosos existentes à hegemonia de um deles, em relação ao qual se estabelecia e determinava a legitimidade de pertença à sociedade. A tolerância apresentava-se como definição de um estatuto sociopolítico de subordinação. Esta situação era concedida normalmente a minorias étnico-culturais. Estas minorias encontravam nesse estatuto a base dos seus direitos e deveres enquanto realidade protegida mas não livre, isto é, não livre para poder fazer do seu credo religioso uma escolha individual, para além da vinculação social que lhe era própria. Neste sentido e contexto, a tolerância não pode ser entendida historicamente como sinónimo de liberdade religiosa. E, consequentemente, a confessionalidade do Estado não é idêntica, nem compatível, com a liberdade religiosa enquanto expressão plena da liberdade individual.

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Desconfessionalização do Estado

O processo de individualização do religioso tornou-se progressivamente possível nas sociedades que passaram a comportar no seu interior uma pluralidade religiosa aceite como legítima e considerada como tal. A tolerância surge assim, neste processo, como referencial que corresponde à possibilidade pública da diversidade de cultos, acarretando um certo grau de desconfessionalização da sociedade pela valorização da crença como uma dimensão interior – a fé. Ainda que sujeita à tutela das Escrituras (como fundamento da revelação) e das Igrejas, essa crença apresentava-se e afirmava-se como autónoma em relação à qual forma de poder civil e político. Este processo ganhou particular relevância em contextos protestantes, nomeadamente no que se considera ter sido a “revolução inglesa”, desde a recusa do poder absoluto do monarca, entre 1642 e 1648, até à proclamação do Acto de Tolerância, em 1689, como definição de um quadro legítimo de pluralidade de convicções.

Mas, em determinados contextos ocidentais, esta pluralidade religiosa foi também acompanhada pela defesa da legitimidade da apostasia e do ateísmo. O que permitiu, a par de uma desconfessionalização do Estado, colocar as posições ideológicas e práticas do combate ao religioso como legítimas ou da defesa da neutralidade do Estado em matéria religiosa, posições estas encarnadas nas várias correntes laicistas.

Em grande medida, esta possibilidade de desvinculação ou de recusa do religioso como factor da legitimidade social e política foi percepcionada como geradora da crise da sociedade e, consequentemente, do Estado. Isto é, voltava-se a uma questão central sobre os fundamentos – os valores – da legitimidade do político, do viver em sociedade.

 

O “retiro do religioso”

Diante dos impasses das sociedades contemporâneas, marcados por profundos problemas de identidade e de integração, o “retorno do religioso” tem sido encarado como reacção à desagregação social. À escala planetária, muitos Estados consti-tuíram-se e defenderam a legitimidade das suas fronteiras, da sua identidade e do seu poder soberano, recorrendo a elementos identificadores de carácter religioso, assumindo, em alguns casos, características mais ou menos teocráticas. Todavia, os Estados modernos, na actualidade, resultam de níveis muito diferenciados de constituição e apresentam formas muito variadas de entrosamento com a dimensão religiosa.

O nacionalismo encarnou geneticamente muitos dos movimentos sociais, culturais e políticos que geraram a autonomia das actuais sociedades politicamente independentes. Nessas várias formas de nacionalismo o factor religioso nunca esteve ausente, mesmo se por vezes submergido por correntes ideológicas revolucionárias, tendo algumas destas pretendido ser substitutas do religioso e de tradições religiosas existentes nessas mesmas sociedades.

As características do religioso presente nas diversas sociedades não são idênticas. Casos houve e há em que as tradições e as mentalidades directamente decorrentes de contextos religiosos se constituíram e se desenvolveram como formas de resistência e de mudança entre as populações. Portanto, a religião não pode ser unicamente reduzida às tradições, pois as suas dinâmicas sociais e políticas, ao longo da história, comportam também factores relevantes de mudança.

Os exemplos susceptíveis de ser evocados são múltiplos, em todos os continentes: desde os movimentos de independência de países europeus e americanos no século XIX; passando pelos vários processos asiáticos e africanos de descolonização, particularmente depois de 1945, com o fim da Segunda Guerra Mundial, até, mais recentemente, à afirmação étnica ou nacional, com a desagregação da hegemonia soviética e com a centralidade religiosa que o conflito israelo-árabe acabou por adquirir, pelo menos em termos de propaganda ideológica. A dimensão religiosa surge como evocação que define pertenças e tem constituído formas de mobilização com incidência em largas franjas das sociedades; também porque, em face dos desafios de desenvolvimento e de integração sociais, os governos dos vários Estados têm dificuldade em responder aos desideratos das populações e produzem elevados graus de desconfiança e desafectação, donde a evocação e o recurso a uma “ordem moral”, a “valores”, em grande medida formulados em termos da validade do religioso como única ou última instância de legitimidade, capaz de gerar formas de solidariedade. Assim, o “retorno do religioso” surge como um tópico ideológico de recomposição do mundo actual enfrentado por uma modernidade, em grande medida incapaz de gerar a participação e a equidade em relação a todos.

No entanto, a temática do “retorno do religioso” é equívoca porque a religião nunca desapareceu das sociedades e da vida das pessoas. Ter-se-á transformado, ter-se-á deslocado de uns espaços para outros, mas a sua actual relevância não se prende tanto ao facto de haver um recrudescer religioso mas, contraditoriamente e, portanto, em tensão entre distintas perspectivas do religioso. Isto é, a pertença e a prática religiosas têm múltiplos significados e implicações: desde o entendimento como uma experiência pessoal e íntima, como expressão da possibilidade de escolha e de liberdade individuais, portanto de autonomia, até à evocação de uma ordem social, fundamento da lei social e política, como forma essencial de enquadramento e de comportamento sociais.

A ambivalência do religioso e a conflituosidade manifestada nas sociedades é, certamente, no momento presente e num contexto mais amplo, a expressão da problemática da relação entre a crítica à religião, entendida esta como sistemas e como convicções, e a modernidade que, questionando o religioso, valoriza a liberdade e a autonomia dos indivíduos, homens e mulheres. Os Estados actualmente apresentam muitas dificuldades em garantir esta liberdade e esta autonomia, inclusive por factores de forte marginalização social e económica. Neste contexto, ao mesmo tempo que alguns Estados se vêem confrontados por uma implosão interna provocada pela concorrência e pelo afrontamento dos universos religiosos como formas identitárias e de reivindicação ou de subversão, outros utilizam e manipulam o religioso, social e politicamente, para sustentar formas de coesão interna e de sobrevivência política, mas também formas tradicionais de poder, nomeadamente patriarcal.

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Informação Complementar

Laicidade "moderna" e retorno do religioso

A laicidade constitui actualmente uma reivindicação de ordem social e política que carrega uma multiplicidade de sentidos. Aparentemente circunscreve-se ao estatuto das religiões e respectivas instituições nas sociedades, nomeadamente nas suas relações com o Estado. No entanto, constitui uma problemática muito mais ampla e profunda na medida em que diz respeito às principais questões e dinâmicas da reprodução e da convivência sociais.

A sua história é complexa e longa. Duas dimensões são marcantes nesse percurso: por um lado, o processo individual e societário de autonomia em face das tutelas da institucionalidade religiosa, o que significa simultaneamente a problematização interna das sociedades no que respeita aos seus valores, às suas normas, às suas tradições e hierarquias; e, por outro lado, a percepção da liberdade e de autonomia como realização pessoal e colectiva, independente ou para além do religioso, o que introduz profundas diferenciações sobre o sentido de vida dos indivíduos e das colectividades.

Estas dimensões arrancaram historicamente, e tornaram-se possíveis, através de um longo processo de dessacralização pela valorização de uma antropologia que, não recusando necessariamente a transcendência ou as múltiplas formas do religioso, tomou estas como instâncias críticas da própria condição humana. O processo de laicidade formulou-se e afirmou-se no interior de sociedades onde esse universo religioso se encontra referenciado ao cristianismo e às diversas Igrejas cristãs. Todavia, as condições e os graus do seu desenvolvimento não são idênticos de sociedade para sociedade e, por isto mesmo, a laicidade tem formas muito distintas de ser compreendida e concretizada; e, para muitos, constitui e permanece como uma hipótese a verificar.

Para certos analistas, o fim dos grandes discursos hermenêuticos sobre a história – o tempo final da ideologias – terá catapultado progressivamente para a cena mundial o papel identificador e mobilizador das religiões. Esta percepção assenta em quatro grandes factos: a revolução iraniana komeinista; a eleição de um papa polaco; a expansão da galáxia evangélica e da “ordem moral” na sociedade estadunidense e nos territórios onde predominavam as correntes históricas do cristianismo; e a dissolução do universo comunista soviético, acompanhada pelo processo de globalização dos mercados, dos meios de comunicação e da economia financeira. Neste processo de “desencantamento” das ideologias como que ressurgem as religiões enquanto formas de “reencantamento” do viver individual e colectivo, como formas de busca e de formulação de identidades individuais e colectivas. De forma mais evidente, e entre os diversos universos religiosos, três oferecem em grande medida, embora de forma diferenciada, os contornos desse “reencantamento”: o islão, o budismo e o cristianismo. Eles apresentam-se contraditoriamente como propulsando essas transformações mas também como formas de resistência às mesmas transformações, donde a sensação e a realidade de muitas das tensões e conflitos actuais terem como elemento determinante, mesmo estruturante, essa recomposição do religioso como força de identidade e, simultaneamente, de dissolução da ordem pública e da estabilidade das sociedades.

Contudo, uma análise mais atenta e profunda permite perceber que o religioso nunca desaparecera nas diversas sociedades, nem deixara de se expandir. Essa presença e expansão, não necessariamente reproduzindo o existente, ganhou novas complexidades, até porque a conflituosidade deixou de ser uma mera questão de relação entre as instituições religiosas e a organização política das sociedades, para passar também a situar-se no âmago da compreensão e das vivências religiosas. Se as religiões ganharam uma enorme relevância nos procedimentos de múltiplas sociedades, contraditoriamente estão confrontadas com a grande mobilidade e circulação actual das pessoas, ao nível individual, familiar, ou mesmo, por deslocações de carácter étnico, onde o factor religioso se apresenta simultaneamente não só como forma de identidade mas também instância de reformulação da linguagem e dos limites da convivência entre os indivíduos nas várias sociedades.

O facto de as grandes correntes religiosas não serem idênticas, mesmo as que se reivindicam como monoteístas ou da tradição abraâmica, traduz a existência de um profundo e complexo debate antropológico que envolve a compreensão da identidade e do desenvolvimento das sociedades e a participação dos seus membros. As várias correntes religiosas inscrevem-se todas elas na necessidade humana e societária de dar sentido e, permanentemente, de ressimbolizar a existência. Mas, de um modo ou de outro, todos estes universos religiosos estão confrontados pelo processo de autonomia e de individualização que se coloca em cada uma dessas mesmas sociedades. Por isto mesmo, assiste-se, por um lado, à reivindicação da liberdade religiosa como fundamento da liberdade de cada um e dos indivíduos em sociedade, e, por outro lado, à afirmação da necessidade da laicidade enquanto forma societária de resposta à pluralidade das crenças e à sua respectiva cidadania, sem impedir a concorrência dos universos de significado e das instituições religiosas mas, simultaneamente, recusando a hegemonia ou a tutela de um determinado sistema religioso em relação à contratualização livre e consentida da pluralidade da vida das pessoas e das instituições.

Os problemas actuais em torno da laicidade, mesmo se revelam velhas e novas crispações sociais e culturais, não podem ser apreciados a partir de uma visão passadista de afrontamento entre Estado e Igrejas, ou de outras formas de combate religioso ou contra a religião, confinadas a um qualquer fossilizado paradigma. Como percurso e aquisição históricas, a laicidade apresenta hoje um conteúdo objectivo e positivo. Antes de mais, a laicidade corresponde, cultural e juridicamente, ao reconhecimento de que nenhum poder exterior à consciência individual pode determinar a fé ou o sistema de crenças de cada um, que esta liberdade se encontra em relação com a lei mas que esta se fundamenta num processo de contratualização legitimado pelo exercício da liberdade de cada um, tomado como cidadão. A laicidade, como expressão do Estado e da sociedade, reconhece e garante a liberdade da concorrência religiosa, possibilitando a pluralidade vivencial no interior de cada sociedade, sempre sujeita ao primado da pessoa e da sua existência, como alteridade reconhecida e aceite. Portanto, a laicidade, a par de constituir um profundo processo cultural, mental e social, persiste como percurso de aprofundamento que pressupõe uma organização social e política assente no diálogo e no ecumenismo, isto é, na democracia como programa continuado de inclusão e de participação. Neste sentido, a laicidade não é um pormenor ou um modo particular de se entender o lugar da religião na sociedade; constitui um factor e uma condição determinantes de humanização, isto é, da assunção do homem e da mulher como seres livres.

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* António Matos Ferreira

Centro de Estudos de História Religiosa da Universidade Católica Portuguesa. Docente de História da Igreja e de História do Cristianismo na Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa e na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

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