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- JANUS 2007 -



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As madrassas do Paquistão

Maria do Céu Pinto *

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O termo madrassa tornou-se conhecida do público em geral após o 11 de Setembro e a descoberta do papel que elas desempenharam na formação de extremistas, em particular dos talibãs afegãos, formados nas madrassas deobandis nas áreas de população pashtun do Paquistão.

No geral, a madrassa dá formação num leque variado de matérias religiosas islâmicas: é, sobretudo, a chamada “escola corânica” (embora o termo possa significar simplesmente “escola”). O currículo privilegia o estudo e a memorização do Alcorão. A maior parte dos currículos não inclui matérias científicas, a matemática, já para não falar de filosofia e de ciências sociais e humanas. Por vezes, não ensinam nem mesmo a alfabetização mais básica, mas tal depende da escola em causa. As madrassas podem ir do ensino básico ao superior (nesse caso, são as Darul Uloom). No geral, as madrassas não promovem o conhecimento moderno, sufocam a criatividade e fomentam o fanatismo.

 

Panorama das madrassas no Paquistão

As autoridades paquistanesas não dispõem de dados rigorosos sobre o número de madrassas e o número de alunos que as frequentam. De acordo com números oficiais, serão cerca de 11.221 os estabelecimentos, mas uma estimativa mais realista aponta para cerca de 20.000 (1). No que a alunos diz respeito, as estimativas oficiais referem 10-11.000 alunos (2), embora na realidade, o número possa oscilar entre 1-1,7 milhões de inscritos, nem que o sejam por curtos períodos de tempo. (3) A proliferação de madrassas explica-se pela debilidade e corrupção no sistema educativo no Paquistão: na realidade, a maior parte das escolas públicas não existe na prática ou só funciona parcialmente.

As madrassas pertencem na maioria às denominações sunitas dominantes na Ásia do Sul – os deobandis e os barelvis. (4) Os deobandis são uma seita mais conservadora; em linguagem moderna, dir-se-ia que é fundamentalista. A sua ortodoxia resulta em parte da forte influência do movimento fundamentalista wahabita. (5) Controlam de longe a maioria das madrassas no Paquistão, o que, por si só, é já um sinal preocupante. Já a corrente barelvi advém do Sufismo, uma corrente mística do Islão que advoga a luta constante do crente pela perfeição da alma e a adoração dos santos enquanto modelo de vida. Seguem-se-lhes as madrassas da corrente conservadora e puritana de inspiração wahabita dos Ahle Hadith/salafitas. Existem também madrassas xiitas e as da corrente islamista sunita Jamaat-e-Islami, um movimento islamita reformista. As madrassas contribuíram para alargar e reforçar as diferenças étnico/sectárias.

As madrassas dependem essencialmente de financiamentos e doações ( awaqf ) e esmolas ( zakat ) dos muçulmanos. O awaqf dá ao clero a sua independência económica. (6) O Paquistão criou, nos anos 50, o Ministério do Awaqf para regulamentar o sector religioso e para colocar as instituições religiosas sob o controlo do Estado, integrando-as no sector formal.

A Darul ul-Uloom Haqqania (Centro do Verdadeiro Conhecimento), situada na auto-estrada entre Islamabad e Peshawar, é conhecida como a “Universidade da Jihad”. O mulá Omar, o famoso líder dos talibãs, foi estudante aí (Universidade da Jihad), bem como os actuais 2.500 estudantes, dos 5 aos 21 anos. Instado por um jornalista, Mohammed Tahir, um estudante de 9 anos, afirma que “a comunidade muçulmana de crentes é a melhor aos olhos de Deus e nós devemos fazer com que os homens o reconheçam pela força. Devemos combater os infiéis, o que inclui aqueles que têm nomes muçulmanos mas que adoptaram as maneiras dos não-crentes. Quando crescer, quero envolver-me na jihad de todas as formas possíveis”. (7)

 

A islamização do Paquistão e a proliferação das madrassas

Em 1947, na altura da independência, havia 245 madrassas. (8) A proliferação de madrassas dá-se só com o regime militar de Zia ul-Haq (1977-1988), que fomentou uma política de islamização. O seu aumento também foi potenciado pela política do Paquistão face à ocupação soviética do Afeganistão. No seu esforço para apoiar a guerra, os grupos de resistência afegãos e o Paquistão, apoiados pelos EUA, precisavam de um fluxo contínuo de mujahidines . Nos campos de refugiados que acolhiam a crescente comunidade afegã fugida à guerra, foram criadas madrassas que, com o passar do tempo, especialmente na província fronteiriça do Noroeste, se tornaram terreno de recrutamento dos mujahidines . Zia, um deobandi fervoroso, autorizou a entrada dos financiamentos da Arábia Saudita, os quais permitiram criar as madrassas de orientação deobandi-wahabita. Os grupos privilegiados pelos paquistaneses foram os fundamentalistas. O regime autoritário de Zia ul-Haq assegurou não só o domínio do clã Pashtun (grupo igualmente dominante no Paquistão), mas também a evolução fundamentalista do Afeganistão, à semelhança do que sucederia no Paquistão durante estes anos.

A radicalização do Paquistão também se deve a acontecimentos externos, como a Revolução Islâmica no Irão: assistiu-se à chegada de enormes financiamentos para defender o mundo sunita do apelo revolucionário da mensagem khomeinista. O Panjabe e o Sind foram as principais vítimas desta luta sectária no Islão, que veio aumentar as próprias fissuras religiosas dentro do Paquistão.

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Nos anos 90, e apesar do fim da guerra do Afeganistão e da regresso da democracia ao Paquistão, o crescimento de madrassas prosseguiu a ritmo elevado devido:

• à política paquistanesa em relação a Caxemira: a jihad em Caxemira precisava de novos recrutas, especialmente após o seu movimento de libertação se ter incompatibilizado com Islamabad. As madrassas tornaram-se de novo terreno de recrutamento, desta vez para a frente leste;

• a guerra entre as facções mujahidines após a retirada soviética em 1989. Os paquistaneses usaram os fundamentalistas afegãos na sua luta para controlarem o poder em Cabul — uma velha aspiração do Paquistão. Os talibãs são uma criação paquistanesa dos anos 90, do regime de Benazir Bhutto e, em particular do seu ministro do interior, o general Naseerullah Babar (agindo em sintonia com o grupo radical islâmico Jamiat ul-Ulema-i-Islam que, à época, fazia parte da coligação governamental).

Os talibãs surgiram inicialmente como uma milícia destinada a abrir e a manter a segurança da rota terrestre que liga o Paquistão à Ásia Central, rica em recursos energéticos, como o petróleo e o gás. (9)

Os governos democráticos de Nawaz Sharif e Benazir Bhutto não conseguiram melhorar a qualidade do sistema de educação: o investimento na educação foi inferior a 1% do PIB. A corrupção e a falta de investimento contribuíram para a degradação acelerada da qualidade do ensino. Assim, as famílias, especialmente as mais desfavorecidas, optam por enviar os filhos para as madrassas, que fornecem um mínimo de educação, mas também a alimentação e alojamento.

O papel das madrassas na difusão do terrorismo não é tão significativo como por vezes se faz crer. Cerca de 10-20% poderão estar nas mãos de grupos fundamentalistas e jihadistas e providenciar doutrinamento religioso, bem como treino militar. Raman estima que, dos membros da al-Qaeda, menos de 15% tenha passado por madrassas. Aliás, não se conhece nenhum membro do topo que seja um produto delas. Contudo, os líderes e quadros dos grupos extremistas, Sipah-e-Sahaba Pakistan e Lashkar-e-Jhangvi, são maioritariamente provenientes delas. Quase todos os líderes dos talibãs e mais de 90% dos seus quadros, bem como mais de 70% dos líderes e quadros dos grupos radicais Harkat-ul-Mujahideen, Harkat-ul-Jihad-al-Islami, Jaish-e-Mohammad e Lashkar-e-Toiba, são produtos das madrassas. (10)

 

Musharraf e as tentativas falhadas de controlar as madrassas

Na sequência do 11 de Setembro e das pressões da comunidade internacional, o presidente Pervez Musharraf comprometeu-se a reformar o sistema das madrassas. Após o 11 de Setembro, Musharraf anunciou algumas medidas contra as organizações jihadistas e as madrassas radicais. As resoluções 1269, 1368 e 1373 do Conselho de Segurança debruçam-se em particular sobre a questão do financiamento e de outras actividades de apoio ao terrorismo. No relatório apresentado ao comité de contraterrorismo da ONU, em Dezembro de 2001, o Paquistão comprometeu-se a reformar o sistema das madrassas. A nova proposta de lei sobre as madrassas ( Deeni Madaris Ordinance 2002 – Voluntary Registration and Regulation ), proposta em Junho de 2002, é uma lei que visa “agradar a gregos e a troianos”, isto é, às exigências da comunidade internacional e aos ulamás (religiosos), e cujo alcance fica, portanto, comprometido. Posteriormente, sob pressão do Muttahida Majlis-e-Amal (MMA), uma coligação de seis partidos fundamentalistas, que ameaçavam a legtimação política do presidente por ocasião de um referendo, Musharraf recuou.

Os dois pontos mais polémicos foram o registo obrigatório das madrassas e o controlo das contas pelo Estado. O problema é que as madrassas não estão dispostas a abrir os seus livros de contas aos inspectores, nem a submeter-se a regras e restrições à sua actividade. Entretanto, a proposta de lei tem andado de ministério em ministério, paralizada pela intransigência dos ulamás e pela relutância de Musharraf em confrontrá-los. Como resultado, a proposta de lei foi sendo esvaziada de conteúdo. A nova lei prescreve que as novas madrassas sejam autorizadas pelas autoridades locais. Por sua vez, as madrassas existentes devem (numa base voluntária), registar-se, no prazo de seis meses, junto do Conselho de Madrassas para a Educação. A lei proíbe que promovam um discurso de ódio sectário e a militância. As madrassas registadas devem declarar as doações recebidas de fontes estrangeiras; devem declarar a admissão de estudantes estrangeiros; os professores estrangeiros devem ter um visto e os restantes devem ser aprovados pelo Ministério do Interior.

As madrassas que não respeitem estas regras perdem o acesso ao zakat , doações ou outros financiamentos do Estado e podem ser punidas. A ameaça de retirada dos financiamentos do zakat não é muito convincente, na medida em que só um terço das madrassas registadas é que recebe dinheiro do zakat (uma quantia mínima se comparada com as doações privadas e as que são recebidas através de canais informais). Não é claro como é que o governo pretende traduzir estas intenções em acção concreta. Já governos anteriores tinham proclamado as mesmas intenções, sem demonstrarem resolução na implementação das medidas para controlar as finanças das madrassas. Esta lei também não prevê medidas concretas para controlar os financiamentos estrangeiros.

O Ministério do Awaqf não dispõe sequer de informação rigorosa sobre as mesquitas novas, o número de madrassas não registadas e suas fontes de financiamento, uma vez que os financiadores estrangeiros/árabes (particulares ou ONGs), não obtiveram a aprovação prévia do governo. O plano de reformas das madrassas deveria contar com a participação dos diversos ramos do Estado, incluindo o Interior, Negócios Estrangeiros, Assuntos Religiosos e Educação. Ora, a inexistência de um plano concertado que integre os ministérios acima referidos e a dispersão das competências impede não só o diagnóstico objectivo da situação, como a implementação das reformas.

Não foram tomadas medidas contra as madrassas que não se quiseram registar. Após os atentados de Londres de Julho de 2005, descobriu-se que alguns dos terroristas tinham viajado para o Paquistão, alegadamente para passar uma temporada em madrassas. O governo reciclou as medidas de 2002 (pela terceira vez desde o 11 de Setembro) e emitiu um ultimato às madrassas: completar o processo de registo até ao final de 2005 e expulsar os estudantes estrangeiros. Mas estas medidas não passaram de letra-morta porque Musharraf teme uma reacção dos islamitas que apoiam o governo e são a sua base de sustentação política. Contudo, em Janeiro de 2006, a MMA e uma das maiores federações de madrassas reuniram-se, recusando implementar as medidas e desafiando o governo.

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Informação Complementar

Grupos fundamentalistas e terroristas paquistaneses

Jamaat-e-Islami : movimento político reformista, criado nos anos 40 por um dos mais importantes pensadores islamistas contemporâneos, Abul Ala Mawdudi.

Jamiat ul-Ulema-i-Islam : movimento deobandi criado pelo maulana Fazlur Rahman. Trata-se de uma seita religiosa reformista que faz uma interpretação rígida do Islão. Tem grande implantação nas áreas pashtun (Baluquistão e província fronteiriça do Noroeste).

Lashkar-e-Jhangvi : facção radical do movimento sunita Sipa-i-Sahaba Pakistan. Ligado à al-Qaeda, é responsável por uma série de atentados contra alvos ocidentais, governamentais e contra membros de outras denominações religiosas, inclusive o rapto e assassinato do jornalista americano, Daniel Pearl, e o ataque contra um autocarro, em Karachi, que vitimou 11 técnicos franceses (2002).

Harkat-ul-Mujahideen : movimento radical que opera sobretudo em Caxemira. Alinhado com a facção de Fazlur Rehman Khalil, do partido islamita Jamiat ul-Ulema-i-Islam. O seu líder alinhou com a frente que Osama bin Laden criou, em 1998, para combater os ocidentais e Israel. Responsável pelo desvio de um avião indiano em Dezembro de 1999. O grupo converteu-se numa rede internacional para defender os muçulmanos em todo o mundo.

Jaish-e-Mohammad : grupo islamista que opera sobretudo em Caxemira. Formado por Masood Azhar, após a sua libertação da Índia em 2000. Está alinhado com a facção de Fazlur Rehman do Jamiat Ulema-i-Islam. As autoridades indianas acusam-no de participação no ataque à bomba contra o Parlamento indiano, que fez nove vítimas, em 2001.

Lashkar-e-Toiba : denominado “Exército dos Puros”, o Lashkar-e-Toiba é considerado o grupo mais violento que opera em Jammu e Caxemira. Trata-se do braço armado do Markaz Dawa-Wal-Irshad , uma seita fundamentalista wahabita.

Sipah-e-Sahaba Pakistan : grupo sunita radical da escola deobandi . Os alvos do seu ódio sectário são essencialmente os xiitas.

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1 - B. Raman , Pakistani Madrasas: Questions & Answers , paper nº 1487, South Asia Analysis Group, 5 de Agosto de 2005, p. 8.
2 - Ibid. O ICG aponta para 10.000 alunos. ICG — “Pakistan, Madrasas, Extremism and the Military”. ICG Asia Report , nº 36, Islamabad/Bruxelas, 29 de Julho de 2002, p. 1.
3 - ICG, op. cit. , p. 1.
4 - Os deobandis e os barelvis detêm mais de 90% das madrassas. Provêem do Estado do Uttar Pradesh, na Índia. São movimentos rivais que surgiram em finais do séc. XIX, com a consolidação do domínio britânico.
5 - O wahabismo é a versão do Islão que predomina na Arábia Saudita. Baseia-se na escola hanbalita, a mais conservadora das quatro escolas de jurisprudência islâmica.
6 - O awaqf goza de protecção legal. Apesar de o awaqf ter sido formalmente nacionalizado pelo Estado, na prática o poder do ministério é muito limitado: os rendimentos do awaqf só podem ser usados para as mesquitas e as instituições religiosas às quais pertencem.
7 - Husain Haqqani — “Islam´s Medieval Outposts”. In Foreign Policy , Novembro-Dezembro de 2002, p. 3. Disponível em http://lasi.lynchburg.edu/harding_r/public/Islam's%20Medieval%20Outposts.htm.
8 - William Dalrymple — “Inside the Madrasas”. In The New York Review of Books, vol. 52, nº 19, 1 de Dezembro de 2005, pp. 3-4. Disponível em http://www.nybooks.com/articles/18514.
9 - Anthony Davis — “How the Taliban Became a Military Force”. In MALEY, William (ed.) Fundamentalism Reborn? Londres: C. Hurst & Co., 1998.
Ahmed Rashid — “Pakistan and the Taliban”. Disponível em http://www.ahmedrashid.com/la/5.pdf
_____ — “Support to Taliban Goes beyond ISI”.
_____ — The Hindu , 24 de Agosto de 1998. Disponível em http://www.hinduonnet.com
10 - V. Raman , op. cit. , p. 3.


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* Maria do Céu Pinto

Licenciada em Relações Internacionais na Universidade do Minho. Mestre em Relações Internacionais no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas. Doutora pela Universidade de Durham, Reino Unido. Professora auxiliar com agregação do Departamento de Ciências Políticas e Relações Internacionais da Universidade do Minho.

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