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- JANUS 2007 -



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O Paquistão e o islão combatente: a Jihad

Jean-Luc Racine *

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Três dias antes de proclamar a independência do Paquistão, Mohammad Ali Jinnah pinta, a 11 de Agosto de 1947, o quadro do Estado muçulmano mas laico que tem em vista. As minorias religiosas (hindus, sikhs, cristãos) terão o seu lugar no novo país, mantendo cada uma delas, como a maioria muçulmana, a sua identidade religiosa, sem lhe dar dimensão política. Mas Jinnah morre em 1948, e Nehru sobrevive-lhe. A instabilidade prevalece. A primeira Constituição do novo Estado, em 1956, faz do Paquistão uma República Islâmica. Na sequência do primeiro golpe de Estado militar, de 1958, o marechal Ayub Khan deseja retirar esse epíteto do texto constitucional, mas tem de fazer marcha atrás. Um dos seus sucessores, o general Zia ul Haq, reforça nos anos 80 a identidade islâmica do Estado paquistanês e da sua sociedade civil, e esse reforço tem consequências no jogo geopolítico que aqui nos ocupa. No entanto, o Paquistão islâmico não se torna numa república islamita, o que os seus partidos religiosos lamentam, eles que pregam uma revolução social e ideológica que faria da sharia o fundamento do Estado. A partir de 1979, a guerra no Afeganistão oferece a Zia a oportunidade de fazer avançar os seus peões, com a bênção americana. Na linha da frente anti-soviética, o Paquistão celebra os mujaedines afegãos, não apenas como simples nacionalistas, mas como combatentes de uma guerra santa, de uma jihad , contra as forças do ateísmo. Fundos e armas afluem. Os serviços secretos militares (ISI, Inter Services Intelligence ), tornam-se um Estado dentro do Estado. Zia morre em 1988, imediatamente antes do início de outra «divina surpresa»: a insurreição anti-indiana de Caxemira, que o Paquistão sempre desejou.

Ao lançarem-se na luta contra Nova Delhi, os caxemirenses denunciam a incúria e as manipulações da política indiana que, desde 1953, vem corroendo a autonomia maximalista inicialmente concedida a Caxemira, designadamente não organizando o referendo prometido por Nehru em 1948. O núcleo duro do movimento nada tem de islamita, pelo contrário: a Frente de Libertação do Jammu e de Caxemira é mais independentista do que pró-paquistanesa (apesar de o Paquistão a apoiar); e é laica, invocando o espírito da kashmiriyat , que transcendia a diferença entre muçulmanos e hindus. Mas a Frente também é um protagonista da história recente, entendida como a de um despertar do islão: em 1962, vitória da FLN argelina sobre a potência colonial; em 1979, tomada do poder pelo islão iraniano vitória da revolução khomeinista; em 1989, derrota soviética contra os mujaedines afegãos; em 1991, implosão da URSS e nascimento das repúblicas muçulmanas da Ásia Central; e, em sucessivos momentos destas décadas, o recomeço do combate palestiniano...

 

A reconquista da Índia

Mas Caxemira não é o Afeganistão, nem a Índia é a URSS. Os indianos aguentam a situação em Caxemira, e Islamabad terá rapidamente de mudar de estratégia, como mudou no Afeganistão mal empalideceu a estrela do seu protegido Gulbuddin Hekmatyar, incapaz de “segurar” o país. No Afeganistão ocidental como no leste de Caxemira, o exército paquistanês, chamando a si os respectivos dossiers, mesmo quando o poder está a ser exercido por civis, vai instrumentalizar o islão num jogo perigoso, como se perceberá imediatamente a seguir ao 11 de Setembro de 2001. Em 1994, os ISI lançam os talibans, formados em madrassas dos arredores de Peshawar, à conquista do Afeganistão. Quase em simultâneo, e enquanto a Índia marca pontos contra os insurrectos caxemirenses, cujos jovens líderes não-islamitas (Yasin Malik, Shabir Shah) trocam a luta armada pelo combate político, Islamabad reforça a sua intervenção local, fazendo juntarem-se aos combatentes caxemirenses do Hizb ul Mujahideen esquadrões paquistaneses e de antigos combatentes do Afeganistão, formados na Caxemira paquistanesa, no Paquistão ou no Afeganistão, e cujo programa é abertamente islamita: o Harkat ul Ansar (Companheiros do Profeta), os Laskhar e Taiba (Combatentes da Pureza), e depois, em 2000, o Jaish e Mohammed (Exército de Maomé). Os Laskhar e Taiba , por exemplo, são o braço armado do Markaz ad Dawa wal Irsahd (Centro de convite à escuta da palavra divina), que tem sede pública no Paquistão e que propaga uma ideologia radical, salafista, pregando um retorno puritano (e reinventado) ao Islão do Profeta e dos seus sucessores imediatos. Caxemira é um teatro de operações, mas a ambição é mais vasta: este islão combatente, transportado pelo espírito da jihad , tem em vista toda a Índia, e mais além dela. Na Internet, os textos do Markaz e dos Laskhar anunciam a reconquista da Índia, rebaptizada Mogolstão ( Mogholstan ).

 

Internacionalismo islamita

Mais elaborada é a organização de um internacionalismo islamita, que tenta dar aos diversos combates dos muçulmanos no mundo um mesmo significado: Bósnia, Tchetchénia, Palestina, Caxemira, Filipinas... A sombra da Al Qaida plana sobre esse fervilhar ideológico, embora a fatwa de Osama bin Laden (Fevereiro de 1998), assinada pelo secretário-geral de um partido islamita paquistanês, não mencione Caxemira. Islamabad entende conduzir, assim, contra a presença indiana em Caxemira, uma guerra de baixa intensidade, feita por formações armadas sob o seu controlo mas não-militares, baptizadas de “combatentes da liberdade”. Nova Delhi descreve a estratégia do seu adversário em duas fórmulas: trata-se de uma “guerra por substituição”, porque o exército paquistanês não opera directamente no terreno da Caxemira indiana, e que recorre ao “terrorismo transfronteiras”.

Tal estratégia não é, porém, isenta de riscos para a sociedade paquistanesa em primeiro lugar, e depois para as opções geopolíticas do país. O islão paquistanês pouco difere do islão indiano – ambos são dominados pelo sufismo, uma tendência sunita popular, adepta do culto dos santos, e que era odiada pelos rigoristas reformadores nascidos na Índia do séc. XIX e que depois se implantaram no Paquistão, em torno de forças políticas específicas, em especial os déobandis rigoristas, próximos dos wahabismo encorajado pelos petro-dólares sauditas. Este sunismo doutrinário não está apenas em guerra contra o islão pervertido e “hinduizado” da tradição subasiática. Entre os seus inimigos contam-
-se também os xiitas (20 a 25% dos muçulmanos paquistaneses), tidos por heréticos. Já nos anos 50, a seita dos Ahmadis tinha sido considerada não-
-muçulmana, porque, para ela, Maomé não é o último dos profetas. Enquanto o Paquistão encoraja a jihad em Caxemira e os talibans no Afeganistão, muitos paquistaneses se inquietam com a deriva sectária que provoca conflitos armados entre grupos radicais, com ataques às mesquitas sunitas ou às imambara xiitas. Em 2000, o regime militar interditou dois movimentos implicados nesses atentados interpaquistaneses, os Sipah i Mohammad (xiitas) e os Laskhar i Jhangvi (sunitas), declarando-os ambos movimentos terroristas. Mas foi na ressaca do 11 de Setembro que o Paquistão do general Musharraf teve de rever a questão do islamismo radical, tornada uma ameaça mais grave para o Paquistão do que para a í ndia e que perturbava a linha geopolítica até então seguida contra Nova Delhi.

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Hinduísmo e Islão pós-11 de Setembro

Abordar o pós-11 de Setembro valorizando as religiões em vez das nações responde decerto à problemática em questão mas envolve riscos, o primeiro dos quais é o de dar crédito à tese do choque de civilizações. Se é fácil demonstrar que esta tese é tão perigosa como simplista e que favorece a amálgama, convém no entanto apurar o peso das percepções que, de uma forma ou outra, a credibilizam. E também é conveniente identificar o que, nos contextos nacionais, releva dos debates em curso : não existe uma Índia hindu que se reconheça nas teses extremistas do Sangh Parivar , como também não existe um islão paquistanês uniformemente radical. A 12 de Setembro de 2001, Índia e Paquistão mostram-se ao lado dos EUA na guerra contra o terrorismo que se anuncia. O general Musharraf vai depressa abandonar os talibans, visto que estes não se dispõem a entregar bin Laden. A Índia declara o seu mal-estar, e espanta-se, através de diversas vozes governamentais, com a possibilidade de “o Paquistão, parte do problema terrorista, poder ser parte da sua solução”. Nova Delhi não conseguirá que o Paquistão seja classificado como Estado terrorista nos termos das resoluções 1368 e 1373 da ONU. Mas as pressões americanas, sobretudo depois do atentado contra o parlamento indiano de 12 de Dezembro do mesmo ano, que incitam a Índia a enviar tropas para a fronteira com o Paquistão, levarão Musharraf a condenar a jihad e a proibir, em Janeiro de 2002, os grupos agora definidos como terroristas por Washington e já não, apenas, por Nova Delhi: a começar pelos Laskhar e Taiba e Mohammad .

O 11 de Setembro e o seu seguimento exacerbaram as contradições da linha paquistanesa seguida por muitos militares por razões mais geoestratégicas do que ideológicas, mesmo se alguns responsáveis, antigos chefes dos serviços secretos ou antigos chefes de estados-maiores, exibem um discurso que promove o islão ou o islamismo. Musharraf, por seu lado, tinha-se distanciado, imediatamente após a sua posse, daqueles a quem chamava “beatões”, embora tenha sido, logo a seguir, obrigado a apagar as referências a Kemal Ataturk.

 

Paquistão contraditório

Duas contradições maiores pesam sobre o Paquistão de hoje: a primeira exprime-se no carácter vaporoso das referências ao Islão. As fracas manifestações pró-talibans e anti-bombardeamentos americanos, em Outubro 2001, mostraram que o peso local dos partidos islamitas tinha sido sobreavaliado. Mas a referência ao islão mantém-se incontornável, porque ela é a razão fundadora da partição de 1947 e exprime a própria legitimidade do país. Sai-se desta contradição invocando um islão moderado, aberto ao Ocidente (recordam-
-se as velhas alianças que remontam a 1954). O argumento visa condenar as derivas sectárias, sunitas e xiitas, bem como as “forças” que Musharraf denuncia nos seus discursos, ele que tão bem evoca episódios da vida do Profeta para justificar as suas inflexões políticas: as forças que (...) “misturam religião com política, ou que procuram propagar uma concepção exclusivista da religião”, forças que “ferem a imagem do Paquistão e nos fazem aparecer nos media internacionais como ignorantes e atrasados”. A outra dificuldade é Caxemira. Se foi preciso admitir, por meias palavras, a intervenção no território usando grupos hoje interditos, a política oficial de apoio aos insurrectos caxemirenses não mudou. A causa da Caxemira permite enfraquecer a Índia e recordar que o Paquistão é parte interessada no conflito. Mas a lógica evocada, no decurso dos anos 90, essa sim, mudou. Passou a falar-se menos de “partição inacabada”, fórmula que remetia para 1947, do que de “direito imprescritível à auto-determinação”. Problema: a própria ONU, como repetiu Kofi Annan em Islamabad, já não considera as resoluções dos anos 40 e 50 como obrigantes, e mesmo que um referendo se realizasse, ele poderia ir além da escolha inicial de integração na Índia ou no Paquistão e encarar a “terceira opção”, a da independência, que seduziria decerto bom número de locais do lado indiano da linha de controlo. Segundo problema: a Índia não responde às concessões paquistanesas. Nova Delhi mantém a pressão de facto, e só encara retomar o diálogo quando as infiltrações de combatentes oriundos do Paquistão tiverem diminuído muito sensivelmente (...) e quando o terrorismo tiver sido contido. Ora, as acções terroristas prosseguem e até tomaram uma nova direcção após o 11 de Setembro, e na sequência do discurso de Musharraf de 12 de Janeiro de 2002 condenando a jihad . É difícil apurar se, como pretende o governo indiano, os atentados que continuam a ser perpetrados em Caxemira e na Índia ainda têm a marca dos serviços paquistaneses em ruptura com a nova linha oficial (como o de Setembro de 2002, contra um templo hindu do Gujarat, reivindicado por um grupo desconhecido, Tehrik e Kasas , “Movimento da Vingança”), ou se se trata de grupos anteriormente patrocinados pelo poder paquistanês mas hoje autónomos, ou ligados a certos elementos da Al Qaida refugiados no Paquistão: facto é que os atentados proliferam no Paquistão, contra estrangeiros e contra instituições cristãs. Ao internacionalizar-se, a questão pode sofrer uma inflexão ideologicamente perigosa. O risco de conflito indo-paquistanês mudou de natureza desde a nuclearização aberta de ambos os países. O conceito de guerra limitada sob guarda-chuva nuclear, testado pelos paquistaneses em Kargil e depois teorizado por estrategas indianos, inquieta todos quantos têm dúvidas sobre a eficácia da dissuasão nuclear.

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Informação Complementar

Os mal-amados de "segunda zona"

Hoje, a frustração cresce no Paquistão. A ideia de que o islão é uma religião mal amada, e de que os muçulmanos são cidadãos do mundo de segunda zona, fez o seu caminho bem para além dos círculos de extremistas islamitas. Os acordos militares entre EUA e Índia, Índia e Israel, são entendidos, mesmo entre intelectuais liberais, como sinais que confirmariam as teses de Huntington. Desde há anos, os islamitas denunciavam a aproximação indo-israelita, que visaria apertar, com o beneplácito ocidental, a tenaz que prende o mundo muçulmano. Nas revistas semigovernamentais paquistanesas, lêem-se artigos denunciando a “aliança bramânico-talmudista”, e que levam às relações internacionais a crítica, banal entre islamitas mas não só, do bramanismo, pintado como instrumento ideológico da hegemonia das castas dominantes do hinduísmo sobre o conjunto da população indiana (muçulmanos, mas também castas baixas e intocáveis) : é a visão de uma Índia sob o jugo das castas altas, até ao dia em que a revolta dos oprimidos a subverta – variante da conhecida imagem de uma Índia mais frágil do que parece, ou artificialmente unificada. Inversamente, a imagem da Índia como potência crescente alimenta os fantasmas sobre a fraqueza do islão. A vitalidade económica indiana, o interesse (ainda limitado) do investimento estrangeiro por este mercado de mil milhões de homens e mulheres, são evocados para explicar a complacência do Ocidente para com um país acusado de desrespeitar as resoluções da ONU em Caxemira. Não apenas nos círculos islamitas, instala-se a imagem de um Paquistão e de uma Caxemira perdendo em todas as frentes porque são muçulmanos. Eis, segundo esta leitura, a lista dos povos muçulmanos oprimidos pelos poderosos: palestinianos, tchetchenos, caxemirenses, e depois iraquianos, em nome de um eixo Ocidente-Israel-Rússia; o amigo chinês ainda não é criticado pela sua política face aos uigures muçulmanos do Sinkiang e comenta-se a duplicidade dos discursos, ou das práticas, tendo como pano de fundo a discriminação muçulmana. Porque é que Timor-Leste, ao contrário de Caxemira e da Tchetchénia, foi tão depressa objecto de um referendo sobre a independência? Porque é cristão, e a sua independência foi obtida contra a Indonésia muçulmana... Porque é que Washington se comoveu tão pouco com o massacre de 1500 muçulmanos no Gujarat indiano, mas se perturba diante do assassínio de dez cristãos paquistaneses?

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* Jean-Luc Racine

Director de investigação no Centre National de la Recherche Scientifique, Centre d'Étude de l'Inde et de l'Asie du Sud, École des Hautes Études en Sciences Sociales, Paris.

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