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- JANUS 2007 -



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A teologia da separação

Silas Oliveira *

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O primeiro documento político a propor o programa do apartheid foi apresentado, em 1938, por Daniel François Malan (pastor da Igreja Reformada Holandesa, dirigente do Partido Nacional e mais tarde primeiro-ministro). Já previa a extinção do direito de voto para as assembleias nacional ( Volksraad ) e a provincial do Cabo, exercido pelos Natives (africanos negros, depois designados por Bantus , mesmo que fossem de outras etnias), e uma legislação especial para os Coloureds (mestiços, ou crioulos). Falava também na necessidade de deter “o afluxo de Natives supérfluos às áreas urbanas” e de os remover dos seus bairros residenciais; de limitar o direito de trabalho, em certas profissões, aos brancos; de impedir os casamentos mistos e a contratação de brancos por não brancos.

Quando, dez anos mais tarde, o Partido Nacional chegou ao poder (1), este programa foi, não só aplicado, como desenvolvido e pormenorizado. Em termos de filosofia e de organização, o seu “motor” era a sociedade secreta denominada Afrikaner Broederbond (Fraternidade Africânder); a sua base de apoio era a importante comunidade de origem holandesa – em parte também de origem alemã e com descendentes dos “huguenotes” franceses fugidos da perseguição religiosa. A confissão dominante nesta comunidade era a Igreja Reformada Holandesa ( Nederduitse Gereformeerde Kerk ), cuja primeira paróquia sul-africana fora estabelecida no Cabo da Boa Esperança em 1652.

O argumento político mistura-se com o religioso desde o início. Hendrik Verwoerd, que teorizou nos anos 50 a doutrina do desenvolvimento eiesoortige (separado), perguntava por que motivo tinham sido os brancos conduzidos à África do Sul trezentos anos antes, sobrevivendo como um povo através de tantas dificuldades, e respondia que tudo isto tivera “um propósito, a saber, que nos tornássemos a âncora da civilização ocidental em África.”

Num outro texto, publicado em Abril de 1950 em Die Kerkbode , o jornal da Igreja Reformada Holandesa na África do Sul, podia ler-se: “A nossa igreja nunca fez disto uma batalha contra as pessoas de cor. Pelo contrário, é uma batalha por elas, um esforço para melhor servir os seus interesses... A tutela branca não é tanto um direito como uma chamada do alto... porque nós não temos apenas uma política, mas uma mensagem: o Evangelho eterno.”

O êxodo de milhares de afrikaners para o norte, depois da ocupação do Cabo (em 1814) pelos britânicos, e o sofrimento causado pelas duas guerras anglo-boers, no final do séc. XIX, foram assumidos em termos bíblicos e enraizaram nestas comunidades um sentimento de “povo eleito” (já presente na sua cultura calvinista). O endurecimento da Guerra Fria, na segunda metade do séc. XX, não veio senão piorar as coisas, dando aos defensores do apartheid a autojustificação de serem, na África, o último baluarte sério do “Ocidente cristão” face ao comunismo.

 

O lugar de cada povo

Desmond Tutu refere, entre outros argumentos doutrinários usados pelo apartheid , a história da “maldição de Cam” e o relato da torre de Babel. Cam, “o pai de Canaã”, é amaldiçoado por ter visto a nudez de seu pai Noé e condenado a ser “servo dos servos” dos seus irmãos (Gén. 9: 20-29). Para contrariar a ambição humana de construir uma torre “cujo cume toque nos céus”, o Senhor confundiu a língua dos construtores “e dali os espalhou sobre a face de toda a terra” (Gén. 11: 1-9).

Se o argumento da “teologia de Cam” é claramente racista, visando praticamente todos os povos africanos e do Médio Oriente (e como tal acabou por ser evitado), já a ideia de que as diversas raças são “ordenanças da criação” persistiu por muito tempo na doutrina da Igreja Reformada Holandesa na África do Sul.

Curiosamente, o primeiro documento conhecido em que se faz uma tentativa de suporte bíblico do apartheid envolve no mesmo argumento as citações da torre de Babel e do Pentecostes (Actos 2: 1-13). Trata-se de um texto do Concílio de Igrejas de 1943 (que reunia os vários ramos provinciais da Igreja Reformada Holandesa na África do Sul), onde se afirma que “Deus faz assim as nações, cada uma com a sua própria língua, história, Bíblia e igreja...” Ora, como sublinha Desmond Tutu, “... a história do primeiro Pentecostes cristão, relatada no cap. 2 do livro dos Actos dos Apóstolos, foi entendida pela Igreja como uma inversão dramática de tudo o que acontecera na torre de Babel.” (2)

E o primeiro a invocar explicitamente, nesta linha de raciocínio, o termo apartheid , é o relatório do Prof. Groenewald, apresentado em 1947 ao mesmo concílio. Nele se afirma que Deus deseja que os povos separados mantenham essa separação ( apartheid ). Textos bíblicos como os de Deut. 32: 8 (“quando o Altíssimo distribuiu os povos e separou a humanidade em grupos, fixou as fronteiras para cada um...”), e Actos 17: 26 (“foi ele mesmo quem marcou os tempos e lugares onde os povos deviam morar”), foram habitualmente citados em apoio desta doutrina.

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Igrejas segregadas

Logo após a vitória do Partido Nacional, a Igreja Reformada Holandesa aprovou, no seu sínodo do Transvaal (1948), um documento intitulado Racial and National Apartheid in the Bible , onde se propunha que a mistura de raças era contrária à vontade de Deus. Na conferência de Bloemfontein, dois anos depois, sobre o tema Bíblia, raça e política, a NGK defendeu explicitamente a doutrina do “desenvolvimento separado”.

É necessário dizer que houve, desde o início, membros e dirigentes da Igreja Reformada Holandesa que se opuseram a esta política, e Desmond Tutu presta especial homenagem ao pastor Beyers Naudé, que lhe sucedeu no cargo de secretário-geral do Conselho de Igrejas da África do Sul e que um dia, no final dos anos 70, deixou a sua congregação segregada e juntou-se a uma paróquia negra da mesma igreja.

Na prática, e para compatibilizar a missão de evangelizar todos os povos com a política do desenvolvimento separado, a Igreja Reformada Holandesa acabou por fundar igrejas subsidiárias, de acordo com as fronteiras do apartheid . Estas foram chamadas, primeiro, “igrejas-filhas”, mais tarde “igrejas-irmãs” – e o que é notável é que as mais antigas foram criadas antes mesmo de o Partido Nacional chegar ao poder.

A Sending Kerk (em inglês Dutch Reformed Mission Church ) foi estabelecida em 1881 para os Coloureds ; um dos seus mais famosos membros, o pastor Allan Boesak, veio em 1982 a ser eleito presidente da Aliança Reformada Mundial (o que potenciou o seu papel de protagonista na luta contra o apartheid ). Já no séc. XX nasceram mais duas, uma igreja destinada aos africanos negros, a NGK in Afrika (também conhecida como Bantu Sister Church ), e outra para os imigrantes provenientes da Índia, a Indian Reformed Church .

 

Heresia e pecado

Em 1982, a Aliança Reformada Mundial (3) declarou “suspensas” da sua comunhão as duas igrejas apoiantes do apartheid – a principal e mais antiga Igreja Reformada Holandesa ( Nederduitse Gereformeerde Kerk ), e um ramo da mesma, tornado independente em 1853, a Nederduitsch Hervormde Kerk .

O processo de reconciliação foi demorado e teve de esperar pela democratização do regime, a partir de 1990. A Aliança Reformada Mundial estabelecera que a justificação teológica do apartheid incorria no estatuto de “heresia”, e impusera três condições para o regresso das duas igrejas: que os cultos fossem abertos a crentes de todas as raças; que fosse prestada ajuda às vítimas do apartheid ; e que o apartheid fosse rejeitado “como errado e pecaminoso, não apenas nos seus efeitos e procedimentos, mas também na sua natureza fundamental.”

Na Assembleia Geral da Aliança reunida em Agosto de 1997, o representante da NGK presente recebeu o encargo de levar para o seu país o voto de readmissão da sua Igreja, na condição de esta reconhecer explicitamente os três pontos exigidos. A Nederduitse Gereformeerde Kerk já tinha abandonado a defesa doutrinária do apartheid e estava a adaptar-se à nova África do Sul, mas o passo final de definir o apartheid como uma “heresia” e um “pecado” ainda não era consensual. Só no seu sínodo de Outubro do ano seguinte a NGK aceitou estes termos e foi, consequentemente, readmitida no seio da Aliança Reformada Mundial.

 

A mesma tentação

Processo semelhante está agora em curso para a segunda Igreja citada, a Nederduitsch Hervormde Kerk , que solicitou, no ano passado, o seu reingresso. As condições exigidas são as mesmas; a Comissão Executiva da Aliança, que recebeu o pedido de readmissão, declarou que a NHK terá de fazer “um reconhecimento público da natureza pecaminosa do apartheid , e de que a justificação teológica usada em sua defesa é herética.”

Em Junho de 2006, uma delegação da Aliança Reformada Mundial deslocou-se à África do Sul, para conversações com a Nederduitsch Hervormde Kerk . A decisão final será tomada na próxima reunião da Comissão Executiva, em Outubro de 2007.

Desmond Tutu valoriza o esforço que representa este reconhecimento de culpa, por parte da Igreja Reformada Holandesa. Num regime em que todas as actividades estavam racialmente segregadas, incluindo a saúde e a justiça, seria difícil encontrar paróquias não separadas. “A minha própria Igreja Anglicana foi sempre oposta ao apartheid , nas suas formulações e em muitas das resoluções das suas conferências e sínodos, mas vivia uma forma de existência apartheid (.../...) Muitas congregações brancas opunham-se a receber a sagrada comunhão juntamente com os seus empregados domésticos, embora não houvesse razão, nem mesmo nos termos do apartheid , para que não o fizessem. (.../...) Não era por qualquer decreto governamental que a igreja pagava o seu clero de modo diferente consoante a raça, com os ministros brancos remunerados muito acima dos seus equivalentes negros. Portanto nós, Anglicanos, não podemos ser pretensiosos no modo como olhamos para a Igreja Reformada Holandesa.” ( op . cit ., pág. 146).

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Informação Complementar

Um rio de sangue

No princípio do séc. XIX, milhares de camponeses ( Boers ) da primeira colonização holandesa, descontentes com a crescente dominação britânica na Colónia do Cabo, partiram para o interior, em busca de espaço onde pudessem cultivar a terra e criar gado. Estes Voortrekkers (pioneiros) nem sempre encontraram vazia a sua “Terra Prometida” e, como é habitual nestes casos, umas vezes negociaram a sua presença, outras lutaram para a impor.

Em Fevereiro de 1838, uma centena de Boers que parlamentava com o rei Dingaan, em pleno território Zulu, foi massacrada. Uma expedição punitiva foi organizada sob o comando de Andries Pretorius. No dia 15 de Dezembro, quando estavam acampados nas margens do rio Ncome, chegou notícia de que milhares de zulus se aproximavam.

Pretorius escolheu um ponto de boa defesa natural, junto do rio, e formou um círculo com as carroças cobertas. Num culto de véspera de batalha, os Voortrekkers pediram a protecção de Deus e declararam solenemente um pacto de guardar, daí em diante, um dia de acção de graças pela vitória.

A fortaleza improvisada ( laager ) resistiu; embora os Boers fossem menos de 500 e os guerreiros Zulus mais de 10.000, foram estes que acabaram por perder, deixando mais de 3.000 mortos no terreno. O rio passou a ser chamado Bloedrivier (Rio de sangue).

É preciso acrescentar que os brancos sitiados tinham armas de fogo (mosquetes) e duas pequenas peças de carregar pela boca. Os zulus combatiam com escudos e zagaias. Mas a situação vivida naquela data tornou-se um elemento fundamental da identidade Afrikaans : sozinhos em terra hostil, firmes na fé, determinados no centro de um laager sem brechas, portadores de uma missão...

O 16 de Dezembro foi chamado popularmente, durante muito tempo, Dingaan's Day , e Desmond Tutu conta que os negros não se atreviam, naquela data, a deixar os seus bairros, por receio de violência racista. A partir de 1952, o regime do apartheid deu-lhe o título mais nobre de Day of the Covenant , e depois de 1980 o de Day of the Vow , para sublinhar o pacto solene que estava na sua origem.

Durante décadas, o imponente monumento aos Voortrekkers , erigido perto do local da batalha, ficou como símbolo da resistência Afrikaans . Mas em 1998 foi inaugurado, do outro lado do rio, o monumento Ncome (nome original do rio de sangue), em memória dos guerreiros zulus caídos.

Com a democratização do regime, 16 de Dezembro passou a ser o Dia da Reconciliação. A Comissão Verdade e Reconciliação, cuja presidência Nelson Mandela confiou ao arcebispo Desmond Tutu, teve a sua sessão inaugural em 16 de Dezembro de 1995.

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1 - A chegada do Partido Nacional ao poder foi vertiginosa. Nas eleições de 1948 conquistou 86 dos 150 lugares no Parlamento; em 1953 subiu esse número para 94; em 1970 tinha 117 dos então 165 lugares.
2 - Desmond TutuNo Future without Forgiveness. Rider, Random House, London 1999, pág. 145.
3 - A Aliança Reformada Mundial (World Alliance of Reformed Churches) agrupa as principais igrejas históricas da Reforma de tendência calvinista (Reformadas, Presbiterianas e Congregacionais), representando cerca de setenta e cinco milhões de crentes em todo o mundo.

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* Silas Oliveira

Licenciado em Filologia Românica pela Faculdade de Letras da Universidade Clássica de Lisboa. Jornalista e Assessor em órgãos de soberania.

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Dados adicionais
Gráficos / Tabelas / Imagens / Infografia / Mapas
(clique nos links disponíveis)

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