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- JANUS 2008 -



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O novo Japão

Miguel Santos Neves *

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Durante a era Koizumi, na busca de uma solução para a prolongada estagnação económica e a intensificação da competição económica e política da China, o Japão implementou um conjunto de reformas que se restringiram ao plano interno e que contrastaram com a imutabilidade da política externa que manteve um low profile . A grande novidade introduzida pelo governo liderado por Shinzo Abe foi a aposta na vertente externa, na normalização política e militar e numa maior próactividade internacional do Japão, alicerçada em três vectores inovadores interligados: a formulação de uma nova orientação na política externa; o lançamento do processo “Innovation 25”; e a nova estratégia de segurança e defesa.

 

Política externa

O primeiro vector consistiu na definição de uma orientação inovadora na política externa delineada pelo ministro dos Negócios Estrangeiros Taro Aso em Novembro 2006 (1) no sentido da afirmação de uma “diplomacia de valores”. Trata-se de um novo pilar da política externa japonesa que complementa os três pilares tradicionais: a aliança Japão-EUA; relações com os países asiáticos vizinhos, em especial a China, Coreia do Sul e Rússia; e a cooperação internacional e ajuda ao desenvolvimento. Esta nova orientação preconiza que o Japão promova activamente valores universais fundamentais como a democracia, liberdade, Direitos Humanos, Estado de direito e economia de mercado na sua acção externa, tendo como objectivo prioritário a construção do “ Arc of Freedom and Prosperity ” na zona da Eurásia (2). Neste esforço de consolidação dos processos democráticos e da economia de mercado, o Japão coordenará os esforços com parceiros estratégicos que partilham valores semelhantes – os EUA e Austrália para acção no lado oriental do arco; a Índia na parte central; e a UE e países membros da NATO na parte ocidental – para além de reforçar diálogos específicos com grupos sub-regionais (GUAM, V4 Visegrado, grupo CVL, Central+Japan). Tal constitui uma ruptura fundamental com a orientação tradicional da política externa japonesa desde os anos 70, a doutrina Fukuda, assente na separação da economia e da política ( seikei bunri ) e numa visão do Japão como um actor neutral, sem ideologia, mediador nas relações entre regimes comunistas e não-comunistas na Ásia, o que justificou, quer a aproximação e apoio às então ditaduras do Sudeste Asiático, quer a aproximação a Pequim em 1978.

Apesar do pilar EUA-Japão continuar a ser a âncora da política externa japonesa, existindo uma aposta no reforço do nível de compromisso na aliança por forma a garantir a continuidade do envolvimento activo dos EUA na região, designadamente com o novo projecto de defesa conjunta assente no sistema de BMD ( ballistic missile defense ), o novo pilar pretende, numa lógica complementar, atingir três objectivos fundamentais: fortalecimento da aliança EUA-Japão na medida em que garante maior coerência entre as políticas externas dos dois parceiros, reduzindo o risco de tensão com a política americana na Ásia evidente em diversos momentos da vigência da doutrina Fukuda; diferenciação relativamente à China, face ao crescente prestígio e influência de Pequim na Ásia, e recuperação da capacidade de influência de Tóquio no contexto de uma competição entre as duas potências pela liderança regional; maior aproximação à UE e à NATO simultaneamente como uma estratégia de diversificação das relações do Japão e de ganho de algum espaço de autonomia relativamente aos EUA, mas também de sinalização de uma vontade de desempenhar um papel mais relevante na segurança internacional.

O outro aspecto inovador é o da nova política para as relações bilaterais com a China, tendo em vista a redução do elevado nível de tensão política na era Koizumi e que contrasta com a crescente interdependência económica entre os dois países. Apesar de a China ser o primeiro parceiro comercial do Japão e o primeiro destino do investimento japonês no exterior, constituindo o principal motor da recuperação económica japonesa, as relações políticas têm sido marcadas por fortes tensões associadas a disputas territoriais (ilhas Senkaku e mar da China Oriental); competição energética; divergências sobre a reforma do Conselho de Segurança; memórias históricas com os incidentes à volta das visitas a Yasukuni e dos livros de história japoneses; questões de segurança bilateral decorrentes da nova política de defesa do Japão e da modernização militar chinesa; e desenvolvimentos da aliança EUA-Japão. Abe privilegiou uma linha de pacificação das relações com a China, demonstrando uma nova atitude com a suspensão das visitas a Yasukuni e a promoção de visitas de alto nível (simbolicamente a sua primeira viagem ao estrangeiro foi a Pequim, tendo Wen Jiabao reciprocado com a visita a Tóquio em Abril 2007), visando a preservação da recuperação económica japonesa, o progresso da normalização do estatuto internacional do Japão, a que a China se tem eficazmente oposto, e a prazo a diluição da crescente influência de Pequim na região. A mudança traduz a nova visão estratégica de que a reemergência do Japão e a normalização do seu estatuto só será possível com a China e não contra a China e que um Japão fraco económica e politicamente não poderá contrabalançar o predomínio da China na região, sendo essencial envolver Pequim no quadro multilateral de modo a que seja um actor responsável na construção da ordem regional.

Esta nova fase permitiu alcançar alguns resultados positivos, nomeadamente a emergência de novas linhas de cooperação bilateral, quer para ultrapassar pontos de divergência, como o plano de desenvolvimento conjunto do Mar da China Oriental, a criação do grupo de estudo conjunto sobre História e novo diálogo sobre segurança, quer para solução de problemas comuns, designadamente as perspectivas de cooperação reforçada em duas áreas prioritárias, energia e ambiente. Contudo, é curioso notar que o novo pilar do “Arco de Paz e Prosperidade” marginaliza a China e define um novo quadro de relações prioritárias em que Pequim não se inclui, o que apresenta uma evidente tensão com a nova política face à China denotando a ambiguidade que ainda caracteriza a política externa japonesa.

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Sociedade do conhecimento

O segundo vector relaciona-se com o lançamento de um processo inédito tendente à definição de uma estratégia de longo prazo, com o horizonte 2025, para acelerar a transição do Japão para a economia/sociedade do conhecimento envolvendo a elaboração do “Innovation 25 Plan” lançado em Outubro de 2006 com base num amplo processo de reflexão envolvendo essencialmente os sectores empresarial e académico.

O relatório final contendo as linhas de orientação estratégicas de longo prazo, divulgado em Maio de 2007, pretende definir um rumo e contém diversos aspectos inovadores. Pela primeira vez foi definida uma estratégia holística que encara a competitividade numa perspectiva sistémica e que adopta um novo conceito mais amplo de inovação que vai para além da visão tradicional da inovação tecnológica e científica e que combina esta vertente com a inovação do capital humano e sobretudo com a inovação social, aspecto central na nova estratégia, associada ao desenvolvimento de novos valores e modelos de interacção e cooperação social e novos sistemas de organização social. Partindo da identificação dos principais desafios para a sociedade japonesa nos próximos 20 anos, designadamente o declínio e envelhecimento populacional, os problemas da sustentabilidade global e o desenvolvimento rápido da sociedade do conhecimento, a estratégia define cinco objectivos fundamentais a serem alcançados até 2025: vida longa e saudável; uma sociedade segura; uma sociedade com uma diversidade de estilos/modalidades de trabalho; uma sociedade capaz de contribuir para resolver os problemas ambientais globais; uma sociedade aberta ao mundo. Apesar de ter uma orientação eminentemente interna, a estratégia tem importantes implicações no plano externo, já que o seu objectivo último é o reforço da capacidade de inovação da sociedade japonesa, de modo a garantir uma posição de liderança em termos de inovação e competitividade internacional. Tal implica uma alteração do papel internacional do Japão apontando para um cenário de um país muito mais aberto ao exterior e próactivo na sociedade do conhecimento global do futuro, quer em termos de liderança do processo de inovação, quer do contributo para a solução de problemas globais.

 

Defesa e segurança

A terceira dimensão da nova política japonesa relaciona-se com a afirmação de um novo papel no domínio da defesa e segurança, quer regional quer global, em resultado da interacção entre três factores: (i) a pressão dos EUA para que o Japão assuma maiores responsabilidades no plano estratégico e da segurança, quer no seio da aliança, quer na Ásia; (ii) o objectivo político de reforço do estatuto internacional do Japão, nomeadamente do seu perfil político e de segurança, o que exige um papel mais activo na segurança global e a possibilidade de participação em operações de segurança colectiva; (iii) o novo quadro de segurança regional, que acentuou a sensação de vulnerabilidade no Japão e criou pressão para o reforço da sua capacidade de defesa, em consequência, quer da crescente percepção da ameaça representada pela Coreia do Norte na sequência da re-emergência do programa nuclear em 2002 e dos sucessivos testes de mísseis culminando com o teste nuclear de Outubro de 2006, quer da modernização militar da China.

A implementação da nova política de defesa teve como principais manifestações recentes a criação do novo Ministério da Defesa em Janeiro de 2007, sinalizando um reforço do estatuto político da Self-Defense Agency ; a aprovação de diversas leis no domínio da segurança designadamente relacionadas com a relocalização das forças americanas no país, a definição das missões prioritárias externas das SDF de cooperação internacional para a paz; o reforço do nível de compromisso na aliança com os EUA e os novos projectos de defesa conjunta; a aproximação à NATO e o reforço do nível de diálogo e cooperação com a Aliança Atlântica; a nova prioridade de cooperação com a Austrália na área da segurança traduzido na declaração conjunta de Março 2007. A Constituição japonesa constitui o principal obstáculo à nova política de defesa pelo que a revisão constitucional surge como uma questão central, em especial a alteração do art. 9.º que consagra a “cláusula pacifista” a qual, de acordo com a interpretação consolidada desde 1954, admite o direito de legítima defesa do Japão e a capacidade de manter um mínimo de forças de autodefesa para defender o país, mas proíbe a existência de forças armadas plenas, a detenção e utilização de armas ofensivas assim como o envio de forças militares para operações no exterior para qualquer acção que não tenha a ver directamente com a defesa do Japão. Ora este quadro constitucional é não só de difícil compatibilização com a capacidade militar actual do Japão, detentor da força naval mais sofisticada na Ásia e com um nível elevado de despesas militares, como impede a assunção de maiores responsabilidades na segurança internacional e participação em operações de segurança colectiva.

Assim, o governo Abe lançou dois processos simultâneos e articulados: (i) o processo de revisão constitucional, questão discutida desde os anos 90, ao promover a aprovação da nova lei do referendo em Maio de 2007, com entrada em vigor em Maio 2010, abrindo as portas para um eventual referendo que constitui a fase final do processo de revisão; (ii) a criação de um painel de peritos para a revisão da interpretação do art. 9.º com o objectivo de reinterpretar esta norma num sentido mais flexível e actual, encarada como uma solução para acelerar a implementação da nova política mas também como uma estratégia alternativa no caso de o processo de revisão constitucional falhar. O objectivo imediato destas iniciativas parece ser a viabilização, quer dos avanços no novo sistema de BMD conjunto com os EUA, no âmbito do qual o Japão assumiria também obrigações de defesa dos EUA nomeadamente de intercepção de mísseis intercontinentais que tenham como alvo os EUA ou objectivos americanos; quer do reforço da participação do Japão em operações de segurança colectiva, com eliminação das actuais restrições impostas pelo art. 9.º (1) que impedem as SDF de se defender quando atacadas, carecendo da protecção directa de forças aliadas, e de prestar apoio logístico a forças estrangeiras, nomeadamente americanas, excepto em zonas fora dos teatros de operações. O caso paradigmático das incongruências do sistema, causa próxima da demissão de Abe, foi o insucesso na aprovação da extensão da lei de medidas especiais de antiterrorismo que permitiria manter a operação de navios japoneses no Oceano Índico no reabastecimento dos navios das forças de coligação da NATO que actuam no âmbito da operação antiterrorista no Afeganistão.

Apesar da recente queda do governo Abe e de uma fase de incerteza política, é de esperar que o novo governo Fukuda dê continuidade a estas mudanças estruturais nas políticas externa e de defesa que poderão abrir caminho à emergência de um Japão com um estatuto normalizado e próactivo no sistema internacional, preparado para assumir maiores responsabilidades regionais e globais e defensor de um multilateralismo reforçado. Contudo, o factor determinante na emergência de um novo Japão será a relação com os EUA, simultaneamente fonte de uma garantia de segurança e factor de inibição da sua normalização e afirmação internacional, e em que medida Tóquio terá espaço de manobra para, sem colocar em crise a sua aliança fundamental, ganhar autonomia e consolidar outras parcerias estratégicas que permitam a prazo avançar na criação de um sistema regional de segurança colectiva, próximo do modelo NATO (a que a nova relação com Camberra poderá não ser estranha), e que tem merecido a oposição de Washington.

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1 - Discurso “ Arc of Freedom and Prosperity: Japan's Expanding Diplomatic Horizons ” no seminário do Japan Institute of International Affairs em 30 de Novembro. Alguns aspectos foram desenvolvidos no discurso “ On the Arc of Freedom and Prosperity ” proferido em 12 Março 2007 no 20.º Aniversário do Japan Forum on International Relations.

2 - O Arco envolve um conjunto de países da Eurásia com inicio nos países Nórdicos, passando pelos três Estados Bálticos e países da Europa Central e de Leste, em especial o grupo de Visegrado (República Checa, Hungria, Polónia e Eslováquia) e GUAM (Geórgia, Ucrânia, Azerbeijão e Moldávia); descendo para a Turquia e Ásia Central (Cazaquistão, Uzbequistão, Tajiquistão, Turquemenistão, Kirguistão), passando pelo Médio Oriente, a Ásia do Sul, em especial a Índia, o Sudeste Asiático com especial destaque para o grupo CVL (Cambodja, Vietname, Laos) e culminando na Ásia Oriental, Coreia e Mongólia.

3 - O relatório final contendo as orientações estratégicas de longo prazo “ Innovation 25: create our future, challenges for unlimited possibilities ”, apresentado em 25 Maio 2007, na 11.ª reunião do Innovation 25 Strategy Council. Vd. intervenção de Kiyoshi Kurokawa, “ Innovation 25 Long-term strategic Guidelines and the future of Japan and the World ” 29 Junho 2007, no Global Innovation Ecosystem Forum 2007.

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* Miguel Santos Neves

Licenciado em Direito (UL). MPhil em Economia do Desenvolvimento na Universidade de Sussex. Doutor pela London School of Economics, Londres. Coordenador do Programa Ásia do Instituto de Estudos Estratégicos e Internacionais (IEEI). Coordenador do Departamento de Direito da Universidade Moderna de Lisboa. Consultor empresarial.

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