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- JANUS 2008 -



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A Europa dos nacionalismos imperiais: Berlim 1885

Fernando Amorim *

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Se o processo de “formatação” das identidades políticas europeias que decorreu ao longo dos séculos XVII e XVIII, particularmente a Leste, no Báltico, Balcãs e Cáucaso, atingiu picos de intensidade subsequentes a longos e repetidos conflitos bélicos nas pazes de Vestefália (Osnabrück-Münster, 1648), Oliva (1660), Carlowitz (1699), Utreque (1713-15), Belgrado (1739) e Jassy (1792), o século XIX seria marcado pela institucionalização de um sistema de congressos diplomáticos periódicos com vista à construção de consensos internacionais quanto às pretensões das potências e que inviabilizassem qualquer novo conflito de grandes proporções.

O “concerto europeu”

Este sistema de “ concerto europeu ” surgiu da necessidade de conter a França após décadas de guerras napoleónicas, e da necessidade de alcançar, na sequência do Congresso de Viena de Áustria (1814-1815), um novo equilíbrio de poder entre as grandes potências da Europa. Nesta linha realizaram-se subsequentemente os congressos de Aix-la-Chapelle (1818), Carlsbad (1819), Troppau (1820), Laibach (1821), Verona (1822), São Petersburgo (1825), Londres (1830) e Berlim (1878 e 1885). Contudo, o século XIX é, também, o século da emergência dos nacionalismos românticos e contemporâneos, que conduziram à independência da Grécia (3.02.1830: contra o Império Otomano) e da Bélgica (4.10.1830-21.07.1831: contra o Reino Unido dos Países Baixos), à eclosão em 1848 de uma série de revoluções pela Europa, de natureza social e nacional, como as que ocorreram em França, Alemanha, Prússia, Áustria, Hungria, Milão, Veneza e Palermo, que reclamavam, na generalidade, a revisão das fronteiras estabelecidas no Congresso de Viena, tendo em consideração as linhas de ‘demarcação' das identidades nacionais.

 

Os novos Estados-nação

O fracasso do sistema de congressos resultou da conjugação daqueles factores nacionalistas com a ressurgência dos factores de tensão entre as potências europeias que as conduziu a sucessivas guerras entre si, como a Guerra da Crimeia (1854-56: Rússia contra uma coligação da França, Inglaterra, Sardenha-Piemonte e Império Otomano), as guerras da unificação ou Risorgimento de Itália (17.03.1861: Sardenha-Piemonte e França contra a Áustria e Duas Sicílias [Nápoles]), a Guerra Austro-Prussiana (1866: Prússia forma a Confederação da Alemanha do Norte; o Império Austríaco torna-se na Áustria-Hungria após o seu enfraquecimento na Alemanha e na Itália) e a Guerra Franco--Prussiana que culminou na unificação da Alemanha (1870-71: 18.01.1871, fundação do II.º Reich; fim do II.º império francês e fundação da III.ª República) sob a égide da Prússia. A segunda metade do século XIX parecia reacender os velhos antagonismos da Europa dividida entre católicos e protestantes: às derrotas da Áustria em Sadowa (1866) e da França em Sedan (1870) aliadas à vitória dos “antipapistas” na unificação italiana e à neutralização de Portugal e de Espanha como potências católicas enfraquecidas por guerras civis e na dependência política e económica inglesa, veio juntar-se, com a queda de Roma (1871), o fim do poder temporal do Papado e o fim da hegemonia católica, emergindo a Inglaterra anglicana e a Prússia luterana como potências triunfantes.

Doravante ambas as potências procurariam definir as suas respectivas esferas de influência. Ao novo Império Alemão interessava o domínio do continente europeu a partir do Reno, que dependia de impedir uma aproximação entre a Áustria-Hungria, Rússia e França. À Inglaterra interessava manter a influência sobre Portugal e Espanha e Itália ao mesmo tempo que lhe convinha atenuar as velhas rivalidades ultramarinas com a França, reconhecendo-lhe algumas esferas de domínio, no Ultramar, com o restabelecimento do seu domínio em Madagáscar e na Indochina, ocupando no Norte de África a Tunísia (1881), onde já detinha a Argélia desde o começo do século XIX, que neutralizassem o sentimento de perda e revanchismo subsequente à derrota na guerra franco-prussiana. A Alemanha rentabilizaria o desagrado da Itália, com ambições a assentar um império colonial na faixa oriental do Norte de África, e que conquistara partes da Eritreia (1870 e 1882), atraindo-a para a Tripla Aliança que ligaria Roma, Berlim e Viena até 1915. Na África Ocidental o choque entre as grandes potências era eminente, especialmente na foz do Congo, após as expedições do pastor anglicano inglês David Livingstone (1854-56; 1858-64; 1866-1873), do jornalista norte-americano Henry Morton Stanley (1871; 1874-1877), do franco-italiano Savorgnan de Brazzà (1874; 1875-78; 1879-1882) e dos agentes privados do rei dos Belgas. Em 1876, na Conferência Geográfica de Bruxelas, que reuniu o rei dos Belgas com representantes da Inglaterra, Alemanha, Rússia, Áustria e Itália (Portugal não se fez representar) foi decidida a criação da Association Internationale pour l'Exploration et la Civilisation de l'Afrique Centrale que, com o apoio alemão e francês, pretendia que lhe fosse cedida toda a margem direita do Congo, incluindo Cabinda, Molembo e Nóqui. Portugal escudava-se na aliança luso-britânica e procurava valorizar a anterioridade da sua presença, que remontava ao século XV. O intento estratégico de travar os ímpetos imperiais da Inglaterra, em cuja esfera de influência se colocava Portugal, levou a Alemanha, durante tanto tempo desinteressada de territórios ultramarinos, a despertar para a ambição de um império colonial. Neste contexto se compreende a hostilidade alemã ao tratado luso-britânico (26.02.1884) que reconhecia a Portugal a soberania sobre as duas margens do rio Congo até às fronteiras do novo Estado do Congo, pretendido por Leopoldo II da Bélgica. O apoio alemão às reivindicações francesas e belgas na região tinha por objectivo alimentar a hostilidade de Paris e Bruxelas contra Londres. No mesmo sentido se devem compreender as reservas e dificuldades alemãs ao reconhecimento dos direitos portugueses no Sul de Angola e no Norte de Moçambique. Em Abril de 1884 o chanceler Bismarck colocaria o litoral da Namíbia sob protecção do Império Alemão, ao mesmo tempo que era constituída uma Sociedade de Colonização Alemã (3.04.1884). Em Junho do mesmo ano enviaria Gustav Nachtigal ao golfo da Guiné, ganhando a corrida aos ingleses no Togo e nos Camarões, e declarando o seu protectorado sobre a África Oriental Alemã (Deutsch-Ostafrika) que incluía o actual Burundi, Ruanda e Tanganica (parcela continental da actual Tanzânia) ao mesmo tempo que a França se estabelecia na Guiné.

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Berlim e o mito da partilha de África

África tornara-se no novo palco do confronto e das velhas rivalidades europeias, o tabuleiro onde se jogaria ou concertaria o equilíbrio das potências europeias. É neste quadro que a Conferência de Berlim deve ser entendida: o objectivo alemão era o de impor uma solução de ordem e autoridade do poder imperial germânico na Europa que perpetuasse uma pax germânica assente numa debilidade política dos governos dos Estados vizinhos, particularmente da França, que dificultasse a sua reconstituição política e das antigas alianças, desviando as atenções das potências europeias da reconfiguração e reestruturação do mapa político da Europa Central para a delimitação de esferas de influência e colonização de África. Por sua vez, a França ia aproveitando os benefícios que a política de Berlim lhe oferecia fora da Europa. Assim, recuperando uma proposta do governo de Portugal mas utilizada por Bismarck com âmbito e objectivos muito mais amplos, os governos alemão e francês acordaram em convidar as potências para uma conferência internacional em que o destino de África fosse discutido, em especial no que respeitava ao regime jurídico das bacias dos rios Níger e Congo, à liberdade de comércio e de navegação nos mesmos e seus principais afluentes (a pedido dos Americanos) e às condições de legitimidade da ocupação dos territórios em África. Nas vésperas da abertura da conferência a Association Internationale du Congo, que resultara da fusão, em 1882, da Association Internationale pour l'Exploration et la Civilisation de l'Afrique Centrale com o Comité d´Etudes du Haut-Congo, obteve da Alemanha o reconhecimento dos seus direitos, o que formalmente punha em causa o tratado luso-britânico de 26.02.1884.

De 15.11.1884 a 26.02.1885 realizou-se então a conferência, com o objectivo oficial declarado pelo ‘chanceler de ferro' de “associar os indígenas de África à Civilização, abrindo o interior do continente ao comércio, facultando aos seus habitantes os meios de se instruir, fomentando as missões e empreendimentos que visassem a propagar os conhecimentos úteis, preparando a supressão da escravatura, etc.”, na prática belos e generosos pretextos sobre os quais os ‘indígenas' não haviam sido chamados a se pronunciar nem a se representar e que camuflavam fortíssimos interesses económicos e comerciais das potências e um objectivo estratégico mais vasto da nova potência imperial alemã. Participaram catorze potências: a Áustria-Hungria, Bélgica, Dinamarca, Espanha, França, Holanda, Império Alemão, Império Otomano, Inglaterra, Itália, Portugal, Rússia, Suécia-Noruega (união pessoal até 1905) e EUA.

Durante a Conferência de Berlim, Stanley foi responsável pelo apoio dos EUA à pretensão de Leopoldo da Bélgica pelo Congo, enquanto Portugal, nesse ínterim, numa tentativa de antecipação, assinava o Tratado de Simulambuco (1.02.1885) em Cabinda com os “Príncipes, Governadores e Chefes de Cabinda” em que se obrigava a “manter a integridade dos territórios sob o seu protectorado” e a respeitar e fazer respeitar os usos e costumes do país, que na altura apenas estava separado de Angola pelo rio Congo (o território só se tornou enclave após os acordos de Bruxelas [5.07.1913] que definiram as novas fronteiras coloniais luso-belgas). Contudo, a França, a 5 de Fevereiro, assinaria uma convenção com a Association dirigida pelo rei dos Belgas, em que, dando-lhe a categoria de Estado amigo, fixava as suas fronteiras com ela, com a anuência tácita da Inglaterra. Portugal, isolado, acabaria por ceder à pressão declarando que anuiria se as nações invocassem interesses gerais, e não os interesses duma entidade que continuava a considerar como simples associação particular. A estranheza de Portugal face à contraposição dos interesses de uma associação com os de um Estado soberano provocou a hostilidade alemã, levando ao reconhecimento por Berlim do Estado independente do Congo, cujo soberano ficou sendo o rei Leopoldo II (ficção que ocultava o domínio belga) que, por morte, legou aquele seu senhorio pessoal à Bélgica.

A 26.02.1885 foi então elaborado o Acto Geral dividido em seis capítulos: 1.º Declaração relativa à liberdade do comércio na bacia do rio Congo, suas embocaduras e países circunvizinhos; 2.º Declaração respeitante ao tráfico de escravos e às operações que em terra ou no mar fornecessem escravos ao tráfico; 3.º Declaração relativa à neutralidade dos territórios compreendidos na bacia convencional do Congo; 4.º Acto de navegação do Congo; 5.º Acto de navegação do Níger; 6.º Declaração que introduz nas relações internacionais regras uniformes relativas às ocupações que pudessem no futuro verificar--se na faixa costeira do continente africano. Este último capítulo, ao definir um novo direito público colonial cujos princípios podem sintetizar-se na necessidade de ocupação efectiva para a posse legítima de um território costeiro africano, na evolução subsequente acabaria por cristalizar a ideia de que esta conferência constituíra o ponto de partida da partilha política da África entre as potências europeias até 1914. Mas a verdade é que a questão das ocupações territoriais apenas preenche dois artigos (34.º e 35.º) que tratam das formalidades a observar para que as novas ocupações no litoral da África (não se referindo pois o hinterland ) sejam efectivas, num total de trinta e oito do Acto Geral, pelo que a “definição exacta das possessões actuais” ficou excluída em Berlim, tendo ainda em conta que muitas regiões permaneciam desconhecidas. Só posteriormente, no fim do século, é que, com as expedições para o sertão, se construirá o desenho de uma carta política da África, recusado em Berlim, e que ainda hoje condiciona as realidades políticas africanas.

 

Os nacionalismos imperiais

A conferência de Berlim (Kongokonferenz) constituiu, a vários níveis, um triunfo para a Alemanha: consolidou o seu protagonismo (já constatado no congresso e Tratado de Berlim de 13.07.1878 de que resultou o desaparecimento da influência turca e o início da rivalidade austro-russa nos Balcãs) como grande potência internacional em cuja dependência passaram a ficar a França e a Bélgica, necessitadas do seu apoio para os respectivos empreendimentos africanos, na medida em que se opunham às pretensões britânicas e países seus aliados. Foi o caso de Portugal, a que foi reservado o tratamento de simples Estado satélite da Inglaterra, com uma capacidade de negociação muito limitada por as restantes potências entenderem que os seus domínios africanos se integrariam na órbita política e económica dos interesses britânicos, o que também não era completamente falso. A Inglaterra viu-se manietada porquanto não podia prescindir do apoio alemão nos diferendos com a França relativamente ao Egipto, considerando a nova realidade estratégica da construção do canal do Suez (1859-1869), pelo que recuou politicamente, não assumindo as suas obrigações no quadro da aliança luso-britânica e isolando Portugal. Este aspecto explica a emergência do desencanto dos portugueses para com a Inglaterra e muito do que se seguiu à crise do Ultimato inglês de 1890, mormente no que respeita a um certo ‘fascínio' que o poder nascente do império alemão centrado em Berlim provocava junto de alguns políticos. A atribuição do Congo à Bélgica correspondia a um compromisso tácito de equilíbrio de interesses entre a Alemanha, França e Inglaterra, porquanto nenhum destes Estados aceitaria que o Congo pertencesse a uma das restantes grandes potências. Acresce que a assunção de um empreendimento africano no quadro de uma ‘vocação colonial civilizadora' e a decorrente ‘sacralização do império' no imaginário colectivo desses países funcionaria como factor de coesão despoletador de uma consciência nacional; de um verdadeiro nacionalismo imperial: foi o caso da Bélgica, estado de base artificial resultante da concertação das grandes potências, no qual os “interesses congoleses” contribuíam muito para o enraizamento da unidade belga, porquanto atenuava as manifestações de desentendimento entre valões e flamengos em nome de um objectivo comum; como antes fora o caso da Espanha dos Reis Católicos, um mosaico cultural homogeneizado na colonização das “Índias Ocidentais” e que sofreu um profundo abalo com a perda de Cuba e das Filipinas (1898), tal como a França viria a ser abalada pela crise de Fachoda (18.09.1898: posto militar avançado dos franceses no sudeste do Sudão), ponto alto das disputas territoriais imperiais com a Inglaterra e que, pela onda de fervor nacionalista gerada pela vitória inglesa, colocou os dois países à beira da guerra; abalo em tudo semelhante ao provocado anos antes em Portugal pelo fracasso do projecto do Mapa Cor-de-Rosa e a crise do Ultimato (11.01.1890) que provocou uma onda de anglofobia popular, mas também um populismo imperial, a redescoberta dos descobrimentos e a prazo, a implantação da República (1910). Este nacionalismo imperial europeu continha, de raiz, algumas características contraditórias: as ideias da necessidade vital; da missão histórica; da vocação nacional civilizadora, repercutidas na expansão ilimitada da soberania nacional em territórios ultramarinos contrariavam a própria ideia da unidade do ‘Estado-nação' como base da cidadania política. A tensão entre uma vontade ‘universalista' de respeito pelos direitos humanos dos povos colonizados, considerados como ‘cidadãos' do ‘estado-nação e as movimentações imperiais para explorar cinicamente as populações consideradas inferiores começou a emergir. O que é digno de registo é que as duas conferências de Berlim de 1878 e 1885, pela repartição arbitrária de território que, respectivamente, efectuaram e prepararam na Europa e em África, contêm em si os germes que estilhaçarão a mística de uma identidade europeia nessa primeira grande crise contemporânea da ‘consciência europeia' que foi a guerra de 1914-18.

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* Fernando Amorim

Licenciado em História pela Universidade Autónoma de Lisboa. Mestre em História – História Moderna, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (FL/UL). Docente da UAL. Investigador do Observatório de Relações Exteriores. Membro do Conselho Directivo do Observatório de Relações Exteriores. Editor do anuário Janus.

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Referências bibliográficas

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KINDER, Hermann; HILGEMANN, Werner – Atlas historique: de l'apparition de l'homme sur la terre à l'ère atomique. Paris: éditions Stock, 1983. p 356, 372 e384. LÉONARD, Yves – “A ideia colonial, olhares cruzados (1890-1930)”. In BETHENCOURT, Francisco; CHAUDHURI, Kirti (Dir.) – História da Expansão Portuguesa: do Brasil para África (1808-1930). Vol. IV. Lisboa: Círculo de Leitores, 1998, p. 521-550.

MARTÍNEZ, Pedro Soares – História Diplomática de Portugal. Lisboa: Editorial Verbo, 1986. p. 501-510.

ZORGBIBE, Charles – Dicionário de Politica Internacional. Lisboa: Dom Quixote, 1990, p. 92-93.

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