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- JANUS 2008 -



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Os empregos da violência global

Mariano Aguirre *

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Será a violência uma forma de trabalho? A resposta é afirmativa se pensarmos no crime organizado. O dinheiro obtido ilegalmente pagou e paga milhares de salários ilícitos a membros de bandos, gestores, guarda-costas, além de a advogados, jornalistas, polícias e também a juízes e políticos que recebem subornos. Estados Unidos, Itália, México e outros países tiveram ou têm claros exemplos desta conivência entre máfias, Estado e intermediários. Há não muito tempo o presidente do México decidiu, dentro da luta contra o narcotráfico, fazer uma limpeza das forças policiais do país e apercebeu-se de que a maior parte dos altos comandos estavam implicados em tráficos ilícitos.

Em geral, as actividades ilícitas têm sido analisadas como mundos isolados da vida legal dos Estados. Aparentemente, o crime é uma anomalia nas sociedades normais. Esta descrição é sem dúvida correcta onde existem Estados constituídos, sistemas legais e coercitivos consideravelmente eficientes, corpos policiais em grande medida fiáveis e cidadãos que não precisam de recorrer à violência para sobreviver. Nestes casos, a violência associada a interesses económicos é uma anomalia.

Mas exercer a violência como forma de vida não é infrequente numa série de Estados do sistema internacional. Constitui aliás uma parte importante da economia desses países, dos seus comércios externos e da vida quotidiana das pessoas. Aí não existe um mundo legal e um ilegal; o segundo é a continuação do primeiro por diferentes meios. Na Guatemala é denominada “poder oculto” a maneira como o Estado tem sido progressiva e violentamente capturado por elites que controlam os aparelhos judiciais, executivo e legislativo, os meios de comunicação social e os meios empresariais e penetram profundamente na sociedade. O Governo do Zimbabwe considera que o país pertence ao presidente Mugabe e à sua família, enquanto noutros países, desde Angola ao Haiti, são as 20 ou 100 famílias tradicionais quem controla a economia e utiliza a violência para tal.

Enquanto do lado do Estado há um patrimonialismo alargado que se exerce através da corrupção, da violência e das cumplicidades exteriores, também dentro das sociedades há outros sectores, além das elites e dos seus funcionários, que se vêem implicados na violência como um trabalho e um padrão de referência que ordena as suas vidas. As situações são diversas, desde grupos armados que lutam por controlar recursos naturais, ainda que mantenham um discurso político de “libertação nacional”, até paramilitares armados por governos, exércitos e empresas nacionais e estrangeiras para que combatam as guerrilhas de esquerda, retirem a população de terras ricas, eliminem membros da oposição política e assassinem jornalistas e sindicalistas.


O paramilitarismo

Na Colômbia, por exemplo, durante várias décadas, diversos governos criaram e ampararam grupos paramilitares até que estes adquiriram tanta força que se transformaram nas Autodefesas Unidas da Colômbia (AUC). Actualmente, o Governo de Álvaro Uribe negoceia com as AUC o desarmamento e a reintegração de aproximadamente 14.000 membros deste grupo. Todos os seus chefes e muitos dos seus membros foram acusados de crimes sangrentos e graves violações de Direitos Humanos. Mas, por sua vez, as AUC e outros grupos paramilitares são actores na economia política da guerra na Colômbia, já que controlam parte do tráfico de drogas e armas, expulsando camponeses para se apropriarem das suas terras, obrigando comunidades a produzirem a base da droga e reinvestindo esses bens em redes ilegais que se estendem além fronteiras.

O paramilitarismo colombiano é um exemplo complexo desta articulação entre poder político, interesses económicos, mobilização forçada de sectores da população, cumplicidades externas e expansão internacional. Actualmente, diversos chefes das AUC estão presos e nas suas confissões aparecem dados esclarecedores. Por exemplo, que os funcionários da polícia e das forças armadas colombianas que realizavam missões armadas ilegais lideradas pelos paramilitares cobravam 3.500 euros por mês, muito mais do que o que ganham como soldados do exército regular. (1) Denunciaram também que a empresa norte-americana Chiquita Brands entregou 1,7 milhões de dólares às AUC e financiou a entrada de 7.000 armas automáticas para que controlassem as zonas camponesas nas quais actuavam.

Mas as formas de violência alcançam outros sectores das sociedades. Em 2004 cerca de 400 membros de quase 30 empresas privadas de segurança realizavam missões de acompanhamento ao Exército colombiano, protecção de empresas dos Estados Unidos e operações directas.

Tanto o trabalho “extra” das forças armadas do Estado, como a criação de exércitos privados e a actuação de mercenários mostra uma mudança na guerra moderna, a qual já não se estrutura em redor de exércitos de Estados, senão que, por um lado, recruta civis irregularmente e confunde as funções tradicionais das forças armadas e, por outro, incorpora os interesses económicos que passam a substituir os objectivos políticos.

Noutros casos, os fins políticos são claros e é em torno deles que se estrutura um sistema que conjuga a militância tradicional com uma ordem social de grupo que substitui o Estado ausente. As organizações Hezbolah no Líbano e Hamas nos Territórios Ocupados da Palestina funcionam ao mesmo tempo como vanguardas armadas contra Israel, grupos de beneficência provedores de saúde, habitação e educação, sistema de segurança social para as famílias dos combatentes suicidas e matriz de referência cultural. Para os milhares de jovens sem futuro em Gaza ou no Sul do Líbano trata-se de uma oferta laboral atractiva.

Um estudo sobre os factores económicos das guerras indica que “a violência é um meio para controlar o comércio, para a apropriação de terras, exploração do trabalho e extracção de benefícios da ajuda humanitária, e para a garantia do controlo dos privilégios económicos e dos seus recursos”. Por sua vez, quem controla estes sistemas de poder violento estabelece vínculos internacionais que lhe permitem agilizar o tráfico de capital, armas, drogas e contar com aliados nos centros financeiros internacionais. (2)

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Procurando um espaço adulto

Não é difícil ver a relação entre pobreza e crime. A pobreza, a marginalização e a falta de oportunidades, especialmente entre os jovens, empurra milhões de pessoas para a delinquência e a serem mobilizados por bandos organizados ou submetidos a trabalhos em condições de semi-escravidão. A marginalização, as rupturas familiares e sociais e a desigualdade geram, aliás, formas de organização baseadas nas identidades que se diferenciam de outros grupos através do uso da violência.

A desigualdade, a falta de um Estado fiável para a maior parte da população e as restrições do sector privado e público na incorporação das novas gerações em empregos formais têm produzido na América Latina, América Central e Caribe o grave problema de massas de jovens sem oportunidades.

Na América Central as denominadas maras, um fenómeno social em crescimento, combinam a delinquência com códigos culturais e comportamentais fechados. Os seus membros aprendem leis de fidelidade e conduta, provêm de famílias desintegradas e com problemas de violência. Essa aprendizagem é usada para alcançar fins económicos de sobrevivência. Mas a violência não funciona apenas de cima para baixo, é também horizontal. A maior parte dos homicídios que se comete no Rio de Janeiro e São Paulo, por exemplo, são perpetrados contra indivíduos de sectores pobres. As pandilhas juvenis têm acesso fácil a armas ligeiras. A resposta dos governos e parte da sociedade é adoptar políticas de mão pesada : leis repressivas, detenções arbitrárias, condenações injustas e favorecimento da impunidade policial. (3)

Em África existe um rápido crescimento da população jovem devido à queda da taxa de mortalidade infantil e ao aumento da esperança de vida. Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), em África há mais de 17,4 milhões de desempregados com idades entre os 15 e os 24 anos. Mas dos jovens que trabalham, 57% ganha uma média de 1 dólar por dia. A população jovem não encontra oportunidades para se converter em adultos produtivos e úteis para a sua comunidade. Pelo contrário, a maior parte dos seus membros carece de um sistema educativo eficaz e não encontra trabalho. Num ou noutro momento, disse Michelle Gawin, do Council on Foreign Relations, os jovens podem converter-se em combatentes, vítimas de atrocidades, refugiados, deslocados internos, força laboral escrava ou crianças de rua. (4) A incorporação em bandos criminosos, grupos políticos armados e nas forças policiais ou parapoliciais são, em demasiadas ocasiões, a única opção, além da arriscada emigração.

 

Violência pós-apartheid

A África do Sul é um dos casos mais paradoxais. Depois do apartheid , a criminalidade e a violência têm-se fortalecido numa complexa rede que integra grupos organizados, jovens e funcionários do Estado. O sistema do apartheid favoreceu a criação de bandos que se agruparam em função da sua identidade para compensar a exploração, o isolamento e as deslocações laborais forçadas. Mas, na nova África do Sul, o crime como forma de vida continuou e vai em crescendo. Nesta África do Sul multirracial, indica um estudo do Centre for the Study of Violence and Reconciliation (CSVR), os jovens enfrentam a falta de oportunidades sociais e económicas.

Cerca de 60% dos jovens sul-africanos que terminaram a escola não encontram trabalho. O crime é atractivo porque fornece um sistema de símbolos, identidades e linguagens. “Os homens jovens que praticam actos criminosos referem-se à sua actividade como o cumprimento de tarefas. A terminologia que utilizam reflecte que o crime é visto como uma via para alcançar um determinado status e oportunidades. E de facto, formar parte de um grupo pode ser visto desde certa perspectiva como uma expressão de resistência juvenil, como uma resposta à marginalidade”. (5)

As redes criminais providenciam também um sistema de intercâmbios e oportunidades. Os ladrões de carros na África do Sul viajam até Moçambique para os vender, levando entretanto diamantes e outros bens. No caminho existem zonas de repouso (nas quais há comida, cama e prostituição) onde contactam com outros criminosos com quem estabelecem redes. Ao benefício junta-se um sentido de pertença global, como os executivos das multinacionais. (6)

A violência nas macrourbes é também um fenómeno cada vez mais extenso. Cerca de 1.000 milhões de pessoas vivem em favelas, villas misérias, slums, ou periferias das cidades onde não contam com serviços públicos, a habitação é precária e pequena para albergar os núcleos familiares, e a segurança das pessoas é totalmente frágil. 90% dos slums concentram-se em África, na Ásia e na América Latina: “A Cidade de Deus” é uma clara amostra da situação. A tendência crescente é que cada vez mais gente viva nestes centros urbanos que combinam o facto de serem parte de centros tecnológicos e financeiros internacionais com a pobreza e a violência.

Nem todos os pobres nem todos os jovens entram na criminalidade e na violência, mas enquanto não se articularem Estados inclusivos e formas produtivas que integrem mais pessoas, o crime e a guerra como trabalho continuarão a ser uma possível saída, quando não uma atractiva opção.

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Informação Complementar

Mercenários: à ordem de quem paga

Denominados mercenários durante séculos, os trabalhadores das empresas privadas de segurança vão a caminho da legalidade. As empresas que os contratam, nos Estados Unidos, na África do Sul ou na Bélgica, travam uma dura batalha de influência para que a sua actividade seja reconhecida como necessária (1). Os Governos dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha vêem esta legalização com interesse. Estes trabalhadores respondem à melhor oferta, realizam missões difíceis que os governos não querem que sejam levadas a cabo pelas suas forças armadas, por temor a sofrerem baixas e a serem criticados pelas suas sociedades, especialmente em missões de paz ou guerras impopulares. Por outro lado, formar e manter um soldado moderno nos Estados Unidos ou na Europa é um investimento muito custoso.

“Fazemos – disse recentemente um membro de uma empresa britânica – o que outros não querem fazer, e não lhes cobramos a segurança social nem os anos de treino”. Mas não é verdade que haja um mundo do uso da força estatal e outro privado: as ligações entre ambos são muito estreitas. Muitos dos novos mercenários são ex-soldados que ao deixarem os quartéis e passarem às forças privadas triplicam os seus ordenados. Também muitos executivos destas empresas são ex-oficiais retirados que levam para a empresa privada a sua agenda de contactos no governo para conseguir bons contratos.

No Iraque, mais de 100 companhias privadas de segurança recebem contratos de milhares de milhões de dólares, sendo que os seus membros cumprem toda a escala de funções militares, segundo um relatório da imprensa dos Estados Unidos. (2) Segundo outras fontes, o número chega às 180 empresas. No entanto, não só não se regem pelas leis iraquianas nem dos Estados Unidos, como tão-pouco pelas convenções internacionais sobre a guerra. O trabalho é duro: 132 membros destas empresas morreram em combate entre 2004 e 2007. Mas é rentável. A empresa ArmorGroup, por exemplo, começou com 20 empregados e conta agora com 1.200 e 240 veículos blindados próprios, tendo cobrado ao Pentágono 273,5 milhões de dólares ao ano pelos seus serviços. Como exércitos privados, cada empresa pinta os seus blindados de cores diferentes, de tal forma que as estradas do Iraque lembram o caos violento e apocalíptico do filme Mad Max.

Como noutros campos laborais, ser mercenário é um fenómeno globalizado. Em Agosto de 2006 foi revelado que 35 ex-oficiais do Exército colombiano foram subcontratados pela empresa privada de segurança Blackwater dos Estados Unidos para trabalharem no seu país a troco de 4.000 dólares mensais. No entanto, foram transferidos sem o seu consentimento para o Iraque, onde perceberam que receberiam apenas 1.000 dólares por mês. (3) Os salários dos mercenários regem-se também pelas hierarquias do mercado. Os colombianos descobriram em Bagdade que os romenos também recrutados iam receber 4.000 dólares enquanto o salário de um ex-oficial dos Estados Unidos no Iraque ronda os 10.000 dólares mensais e um efectivo não oficial norte-americano ganha uns 7.000 dólares ao mês.

As empresas privadas de segurança e alguns governos estão a fazer pressão a favor do próximo passo: participar em missões de paz das Nações Unidas. “É uma tendência inevitável. – disse um representante de uma empresa britânica – O sistema actual não funciona e nós somos mais baratos, mais eficazes e tenho a certeza de que uma força privada, pequena e bem equipada, poderia rapidamente acabar com os massacres no Darfur”. (4)

1 http://americancontractorsiniraq.com/

2 FAINARU, Steve – “Iraq contractors face growing parallel war”, The Washington Post , 16 de Junho, 2007.

3 http://www.Ciponline.Org/colombia/blog/archives/000299.htm

4 EUDES, Yves – “La guerre privée des mercenaries”, Le monde dossiers et documents 366, Julho-Agosto 2007, p. 8.

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1 - El Mundo, Madrid, 20 de Junho de 2007.

2 - MALONE, David M. e Sherman, Jake – “Economic factors in civil wars: policy considerations”. In ARNSON, Cynthia J. e ZARTMAN, I. William – Rethinking the economics of war. Baltimore: John Hopkins University Press, 2005, p. 238.

3 - PINHEIRO, Paulo Sérgio – “Youth, violence, and democracy”. Current History, Fevereiro, 2007, pp. 64-69.

4 - GAVIN, Michelle – “Africa´s restless youth”. Current History, Maio 2007, p. 222.

5 - “Turning the tide of violence in South Africa”, IDRC Bulletin , Ottawa, http://www.idrc.ca

6 - NORDSTROM, Carolyn – Shadows of war. Violence, power, and international profiteering in the Twenty-first Century. Berkeley: University of California Press, 2004, p. 135.

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* Mariano Aguirre

Licenciado em Estudos sobre Paz e Conflitos no Trinity College, Dublín. Director de Paz, Segurança e Directos Humanos na FRIDE (Fundación para las Relaciones Internacionales y el Diálogo Exterior), em Madrid. Foi coordenador do Programa para a Paz na Fundação Ford (Nova York). É autor de diversos livros e comentador em periódicos internacionais.

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