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- JANUS 2009 -



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Medicina e tecnologia

João Lobo Antunes *

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A revolução tecnológica na medicina e, consequentemente, na saúde, ocorreu no século XVII quando Van Leenwenhock (1632-1723), um polidor de lentes, aperfeiçoou o microscópio até conseguir ampliações de 270 vezes, instrumento com o qual o seu contemporâneo Robert Hooke (1631-1720) descobriu a célula.

De uma forma simplificada pode definir-se tecnologia como a procura dos resultados úteis da investigação científica e as consequências que lhes estão associadas. A biotecnologia é um ramo particular da tecnologia e refere-se aos processos e produtos que oferecem o potencial de alterar e, até certo ponto, controlar, o fenómeno da vida.

É precisamente o sentido e a amplitude desse controlo que tem gerado alguma preocupação ética.

 

O novo paradigma

De facto, a tecnologia tornou-se quase uma nova religião, que alimenta a esperança da salvação final por seu intermédio, quaisquer que sejam os custos sociais e humanos. Note-se que, nesta análise, o conceito de tecnologia aplica-se indiferentemente, a fármacos e a dispositivos médicos. Hoje vivemos na dependência absoluta das tecnologias, que assumem três tipos principais:

1 – Tecnologias de suporte de vida – monitores, ventiladores, aparelhos de diálise, pace-makers.

2 – Tecnologias diagnósticas – tomografia axial computorizada, ressonância magnética, ultrassonografia, endoscopia, genética.

3 – Tecnologias cirúrgicas – próteses, lentes intra-oculares, implantes, endoscopia, circulação extra-corporal.

O genoma, a clonagem e o uso de células estaminais representam paradigmas daquilo a que se tem chamado «tecnologias da transcendência», ou seja, aquelas por meio das quais o homem ultrapassa os seus próprios limites.

Por isso mesmo, elas obrigam à assunção de posições filosóficas no que respeita
à definição da vida e, particularmente, do seu início.

Uma das áreas emergentes, que parece oferecer uma promessa quase ilimitada,
é a chamada nanotecnologia, que se refere a materiais e a sistemas cuja estrutura
e componentes possuem propriedades novas, aplicáveis nas áreas da física, da química e da biologia dadas as suas dimensões (10 -9 a 10 -7 m) (1). Nanosferas ou nanocápsulas podem ser usadas no transporte de fármacos ou de genes, e matrizes de hidrogeles podem ter igual actividade e servirem como instrumento de engenharia de tecidos. Nanodispositivos podem ser aplicados na manipulação de biomoléculas individuais, introduzindo-as, por exemplo, no interior do núcleo celular.

Na área da saúde, o recurso à tecnologia é particularmente importante naquilo que se tem designado como a procura de um bem--estar sustentável. Numa análise recente, Holdren chama a atenção para os factores que mais contribuem para a mortalidade, numa perspectiva global, sendo os principais a malnutrição materna e infantil e, em seguida, a hipertensão, a hipercolesterolémia, a obesidade e a falta de exercício físico. Note-se que algumas medidas de intervenção que propõe são extremamente simples, como a introdução de tecnologias de tratamento da água ou redes tratadas com insecticida para combater a malária.

Uma das características do progresso tecnológico das últimas décadas é que o seu crescimento não tem sido linear, mas sim exponencial, poderíamos dizer mesmo imparável e imprevisível, e tem sido determinado por forças dentro e fora da profissão médica. De facto, e acima de tudo, é a qualidade das tecnologias de que dispõe que serve para julgar a qualidade de um hospital moderno, do mesmo modo que dos médicos, sobretudo daqueles que utilizam intervenções instrumentais (e o campo não se restringe apenas às especialidades cirúrgicas, mas estende-se a especialidades médicas como a cardiologia ou a gastrenterologia), se exige a constante adopção dos dispositivos mais avançados. As pressões para tal provêm não só dos doentes e da sociedade em geral, mas igualmente, e de forma poderosa, da indústria.

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O complexo médico-industrial

Uma das consequências do desenvolvi-mento tecnológico foi a constituição do que Relman chamou, em 1980, de «complexo médico-industrial», pois a saúde tornou-se uma área de negócios cada vez mais atractiva e geradora de situações de claro conflito de interesses. Tome-se, como exemplo, o caso do cirurgião-inventor que está simultaneamente interessado em demonstrar a segurança e a eficácia do seu produto e na sua promoção comercial, da qual espera colher dividendos. Por outro lado, ele tenderá naturalmente a ensaiar o novo produto nos seus próprios doentes e tal ocorre num contexto de possível coacção sobre eles.

A introdução de novas tecnologias em saúde conhece em regra três tempos sucessivos.
O primeiro é de surpresa e encanto com o seu potencial. Ainda nesta fase, as aplicações tendem a alargar-se muito para além da sua indicação original. A segunda fase é a do reconhecimento dos riscos que comportam, o que leva, por vezes, após o entusiasmo inicial e com o aparecimento de resultados desapontadores e até com consequências negativas para os utilizadores, ao que Renée Fox chamou de “moratória clínica”. Finalmente, na terceira fase, inicia-se o processo de regulação que inclui, naturalmente, o controlo de risco e a definição da relação custo-benefício.

Para que a introdução de uma nova tecnologia seja bem sucedida, particularmente do ponto de vista comercial, é necessário que se conjuguem vários factores:

1 – Identificar um problema que necessita de ser resolvido e que se refere, muitas vezes, a patologias com poucas ou nenhumas soluções, o que cria uma óbvia frustração a médicos e doentes.

2 – Tecnologias que marquem a diferença, que tenham probabilidade de ser adoptadas como padrão, que revelem uma boa relação custo-benefício para o fabricante e para o utilizador, que reduzam o tempo de cuidados e de incapacidades, e que sejam protegidas por patentes.

3 – Que haja uma população de doentes facilmente identificável.

4 – Que haja um grupo de médicos interessados, com linhas de referenciação bem estabelecidas, agressivos em relação às novas tecnologias e que recebam uma recompensa financeira pelo seu uso.

5 – Que sejam ultrapassados obstáculos à sua aceitação por meio de ensaios clínicos exequíveis a curto prazo, o que implica também a intervenção de agências de regulação expeditas.

6 – Comercialização por entidades interessadas, com modelos de negócio rentáveis, com equipas de gestão experientes e recursos financeiros robustos.

As consequências da introdução das novas tecnologias na prática médica são fenomenais e de natureza muito diversa. Em primeiro lugar, tornaram a medicina muito mais interventiva e, em certos casos, vieram mesmo desafiar o conceito de doença, como, por exemplo, no caso de um dador vivo num processo de transplantação. Por outro lado, questionam os próprios objectivos da medicina ao propor processos de melhoria ( enhancement ) das capacidades físicas e do capital biológico. Cito, entre outros, o aperfeiçoamento do equipamento genético com o diagnóstico pré-natal e a pré-implantação do ovo no útero materno, a selecção de embriões com características desejáveis, a escolha do sexo, a melhoria do desempenho através do dopping , a busca da eterna juventude retardando o envelhecimento, a modelação da memória apagando recordações traumáticas e da disposição de espírito na procura ilusória da felicidade.

 

O paradoxo do risco e incerteza

Todas estas tecnologias levantam preocupações compreensíveis no que diz respeito
à segurança, à igualdade de acesso e à liberdade ou coacção no seu uso.

A expansão do conhecimento científico e das armas tecnológicas vieram, paradoxalmente, aumentar o risco e a incerteza.

A multiplicação de testes predictivos em doenças assintomáticas gera, inevitavelmente, uma espécie de medicalização da condição humana, além de potencialmente afectar a equidade no acesso aos cuidados de saúde. A doença tende a constituir-se tecnologicamente e o conceito de normalidade – por exemplo em relação a anomalias detectadas acidentalmente numa ressonância magnética cerebral ou o valor do PSA em patologia prostática – é constantemente questionado. De facto, a generalização do emprego das tecnologias veio de certo modo eliminar a singularidade do doente e a subjectividade do médico e, neste aspecto, é particularmente sintónica com o paradigma corrente da chamada “medicina baseada na evidência”.

É interessante apontar que, como notou Cassell, a tecnologia promove os seus valores pelas suas características intrínsecas, pois é redutora, simplificadora, impaciente, intolerante da ambiguidade, confere poder e desenvolve-se mais rapidamente do que as ideias que a geram. Repare-se que estas características se adaptam como uma luva a certos traços da natureza humana, como a tendência para o “encantamento”, a atracção pelo imediato e não ambíguo, a fuga à incerteza e o desejo de poder. Muitos dos debates éticos da ciência biomédica contemporânea prendem-se precisamente com os valores da tecnologia, que, ao contrário do que muitos proclamam, não é moralmente neutra.

 

Para uma nova agenda da ciência médica

No quadro «Medicina prospectiva e plano de saúde personalizado» está desenhado um possível plano de saúde do futuro, por meio de uma medicina prospectiva e personalizada. Note-se como a tecnologia está presente na avaliação do risco, nas técnicas de melhoramento e nas intervenções terapêuticas. Este é certamente um cenário futuro que se vai concretizando perante os nossos olhos, cujo paradigma é bem ilustrado pela chamada farmacogenética que, através da informação genética individualizada, permite melhorar a segurança e a eficácia dos medicamentos utilizados, por agora, um campo relativamente restrito. Por exemplo, no caso do cancro de mama, a positividade para HER-2 é preditiva da resposta ao fármaco Herceptin.

Todo a área dos testes genéticos levanta, no entanto, questões complexas que dizem respeito ao seu fundamento, fiabilidade, controlo de qualidade e interpretação correcta, e obrigam a uma regulação cuidadosa, sobretudo quando está em causa a venda directa ao publico, cada vez mais generalizada.

Por outro lado, é de notar a relevância da chamada avaliação de risco que se prende não só com factores genéticos e ambienciais, mas também das próprias intervenções diagnósticas e terapêuticas. A medicina moderna é cada vez mais incerta, arriscada e perigosa e, paralelamente, criou expectativas que não podem ser cumpridas e fez crescer a intolerância ao erro, à incerteza e ao risco.

Conforme sublinhei já noutros artigos, a agenda da ciência e da tecnologia na medicina e na saúde em geral tem de incluir a vigilância da sua repercussão profunda na vida não só das pessoas mas da própria sociedade. Exige por isso uma responsabilidade partilhada e o respeito pelos valores humanos que são o eixo moral de qualquer sociedade, obrigando à análise das implicações éticas e sociais, o “ELSI” que James Watson reclamou para o projecto do genoma humano.

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Informação Complementar

Alguns marcos históricos

1504 – Prótese manual de ferro.

1807 – Endoscópio para cirurgia minimamente invasiva.

1847 – Amálgama de prata em odontologia.

1905 – Primeira tentativa de artroplastia da anca.

1928 – Pulmão de aço para vítimas de poliomielite.

1943 – Máquina de diálise renal.

1951 – Primeira válvula cardíaca artificial.

1953 – Máquina de circulação extra-corporal.

1957 – Implante coclear.

1957 – “ Pacemaker ”.

1969 – Primeira cerâmica bio-compatível.

1969 – Coração artificial total temporário.

1982 – Coração artificial permanente Jarvik-7.

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1 - Um nanómetro, ou seja 10 -9 m, tem o diâmetro correspondente a 10 diâmetros atómicos.

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* João Lobo Antunes

Professor Catedrático de Neurocirurgia da Faculdade de Medicina de Lisboa. Presidente do Instituto de Medicina Molecular.

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Referências bibliográficas

Beyond Therapy: Biotechnology and the Pursuit of Hapiness. A report of the President's Council in Bioethics, Cana Press, 2003.

E.J. CASSELL – The Sorcerer's Broom: Medicine's Rampant Technology Hastings Center Report, 23:32-39, 1993.

J.B. ELDER, C.Y. LIU, M.L. APUZZO: Neurosurgery in the realm of 10-9, Part 1: stardust and nanotechnology in Neuroscience. Neurosurgery 62: 1-20, 2008.

A. FIRLIK, D.W. LOWRY, A.J. LEVY, R.C. HIRSCH – The neurosurgeon as Innovator and Entrepreneur. Neurosurgery 47:169-177, 2000.

A.C. GELIJNS, N. ROSENBERG, A.J. MOSKOWITZ – Capturing the Unexpected Benefits of Medical Research, N Engl J Med 339:693-698, 1998.

B. HOFMANN – Technological Medicine and the Autonomy of Man. Med Health Care and Philosophy 5:157-167, 2002.

J. LOBO ANTUNES – Tecnologia: «Meio ou Fim, Rev Portuguesa de Filosofia» 62:173-184, 2006.

Science, 295:995-1036, 2002.

R. SNYDERMAN, R.S. WILLIAMS – Prospective Medicine: The Next Health Care Transformation, Acad Med 78:1079-1084, 2003.

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Dados adicionais
Gráficos / Tabelas / Imagens / Infografia / Mapas
(clique nos links disponíveis)

Link em nova janela Indicações originais e secundárias de fármacos e de equipamentos de sucesso

Link em nova janela Medicina prospectiva e plano de saúde personalizado

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