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- JANUS 2009 -



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Istambul

Luís Moita *

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Em Istambul ainda hoje se encontra a “Sublime Porta”, mas o frágil monumento que a materializa não dá ideia da anterior grandeza da expressão. Na linguagem erudita e na comunicação diplomática, “Sublime Porta” era, a um tempo, o palácio do sultão, a corte imperial e o próprio centro de decisão política do Império Otomano.

Talvez a metáfora da porta não seja a mais indicada para simbolizar a cidade. Ela é antes um ponto de encontro, um local de junção, uma sobreposição de eras como se fossem sedimentos geológicos entrecruzados. A sucessão de nomes – Bizâncio, Constantinopla, Istambul – representa enfaticamente os tempos históricos sobrepostos.

Quando o imperador Constantino sentiu que Roma estava enfraquecida e as fronteiras orientais do Império ameaçadas, deslocou uma espécie de segunda capital para uma antiga localidade, situada num ponto estratégico de primeira importância, na linha divisória entre terras e mares, entre continentes e estreitos. Essa localidade – Bizâncio – tinha uma história secular, ao longo da qual foi mudando de mãos, dos persas para os espartanos, destes para os atenienses, mais tarde para os macedónios. Não admira que seja o Museu Arqueológico de Istambul a abrigar o sarcófago de Alexandre Magno, justamente da Macedónia, um sarcófago de rara beleza, circundado de escultura, posto ao lado de um outro não menos belo, o sarcófago chamado das “Mulheres Enlutadas”.

Instalada aí a “Nova Roma”, em 330 passa a designar-se formalmente Constantinopla, que viria a ser capital do Império Romano do Oriente – o Império Bizantino. Aí fermentariam as ideias que levaram à histórica cisão do cristianismo em 1054, como se as “duas Romas” se opusessem, uma centro espiritual do catolicismo e do papado, outra sede do cristianismo ortodoxo, este mais submisso à autoridade temporal do imperador. Leão IX de Roma e Miguel Cerulário, patriarca de Constantinopla, ao excomungarem-se mutuamente, abriram uma ruptura até hoje não sarada.

Pouco depois, em 1056, a primeira cruzada passa por Constantinopla a caminho de Jerusalém, prenunciando aquele que viria a ser um dos momentos mais trágicos da história da cidade: atacada pelo mar, foi cercada pelos francos da quarta cruzada, já em 1204, com extremos de barbárie na pilhagem das riquezas e no massacre da população.

Então se iniciaria a lenta decadência de Constantinopla e do Império Bizantino, até que em 1453 foi conquistada pelos otomanos vindos da Anatólia, comandados por Maomé II, o Conquistador, dominando assim aquele importante ponto estratégico à beira do Bósforo, tornando-a capital do grande Império turco, função que manteve durante cinco séculos (para alguns historiadores, esta queda de Constantinopla assinala o fim da Idade Média).

Do ponto de vista religioso, a cidade manteve uma curiosa ambiguidade: o primeiro sultão Maomé II decidiu manter Constantinopla como centro espiritual do mundo cristão ortodoxo, nomeando o seu chefe na qualidade de patriarca ecuménico; mas a partir do século XVI, depois da conquista do Egipto pelos otomanos, o califado transfere-se para a capital do Império: o sultão enquanto autoridade política é também califa na pura tradição muçulmana.

Com o desmantelamento do Império turco após a derrota da guerra de 1914-18, fica aberto o caminho para a proclamação da República Turca por Mustafa Kemal Ataturk: em 1922 é abolido o cargo de sultão; em 1923 é reconhecida a República, cuja capital passa para Ancara; em 1924 é abolido o califado, confirmando o carácter laico da República.

Essa nova capital Ancara é uma cidade totalmente incaracterística, apenas nela se distinguindo o faustoso mausoléu do “pai” da Turquia moderna Ataturk, um monumento de excessiva grandiosidade e de chocante culto da personalidade. Foi ele a decidir a mudança definitiva do nome de Constantinopla para Istambul, já em 1930. Mas tal alteração, parecendo subalternizar a antiga capital imperial, em nada prejudicou o seu crescimento: Istambul teria 700.000 habitantes em 1927, passa para um milhão em 1950, 2 milhões em 1960, 3,5 milhões em 1970 e agora estima-se que a grande conglomeração urbana que a envolve atinja os 12 milhões de habitantes.

A população islamizada (o ramo sunita é dominante) convive pacificamente com os sinais de modernização próprios de uma grande metrópole europeia. Mas o ambiente urbano conserva toda a atmosfera do passado glorioso, desde as monumentais mesquitas aos palácios imperiais. E essa grandeza é compatível, e fica até sublinhada, com as marcas características do modo de vida daquela latitude: a grandiosidade do bazar (a imensidão das lojas, a diversidade das cores, os cheiros inesquecíveis...), os banhos turcos, os pescadores à linha na ponte Galata sobre o Corno de Ouro, os sumos de laranja servidos nas praças, as borras do café turco...

Não se pense que foi sempre fácil a convivência com o «outro civilizacional».Os turcos têm um pesado contencioso com os gregos, vivem com a memória do genocídio dos arménios, estão em conflito com os curdos. Todavia, a cidade mantém um ambiente cosmopolita e mesmo ecuménico, nela se cruzando uma extraordinária sucessão de influências e de inspirações civilizacionais: ponto de encontro entre cristianismo ortodoxo e islamismo moderado, entre Oriente e Ocidente, entre a Europa e a Ásia, Istambul é porventura um dos maiores símbolos da miscigenação cultural entre comunidades humanas.

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Informação Complementar

Resíduos do Império

Quem lê as páginas de Orhan Pamuk, Istambul: Memórias de Uma Cidade (Lisboa: Editorial Presença, 2008), apreende o sentido de melancolia que invade os habitantes da cidade:

«Duzentos anos antes do meu nascimento, Flaubert visitou Istambul e, impressionado com as gentes e a originalidade da cidade, escreveu numa carta que, no espaço de um século, pensava ele, Constantinopla se tornaria a “capital da terra”. Contrariamente a esta previsão, o Império Otomano desmoronou-se e acabou por desaparecer. Na época em que nasci, Istambul, como cidade de importância mundial, vivia os seus tempos mais fracos, mais miseráveis, mais sombrios e menos gloriosos dos seus dois milénios de história. Em todo o decurso da minha vida, o sentimento da ruína do Império Otomano e da tristeza pela miséria dos escombros que cobriam a cidade representaram os elementos característicos de Istambul. Passei a vida a lutar contra esta tristeza, ou então – como acontece com todos os habitantes de Istambul –, a tentar apropriar-me dela» (p. 14-15).

E ao compará-la com outras cidades, Pamuk acrescenta: “Os vestígios das civilizações são muito mais perceptíveis. O arco mais modesto, a fonte mais pequena enterrada em toneladas de betão, a mesquita mais pobre nos bairros afastados, por mais maltratados e esquecidos que estejam, fazem sentir com dor aos milhões de pessoas que vivem entre essas memórias – tanto como as grandes mesquitas monumentais e os edifícios históricos da cidade – que são resíduos de um grande império” (p. 107).

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* Luís Moita

Vice-reitor da Universidade Autónoma de Lisboa.

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